DEPOIS DA QUEDA
(1964)

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  • REPERCUSSÃO (3/3)
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    Décio de Almeida Prado
    O Estado de S. Paulo
    28 de setembro de 1964

    Acervo Flávio Império

    © Décio de Almeida Prado

    A encenação de Depois da queda

    Não há muito que dizer sobre o trabalho de Flávio Rangel: a concordância, em contraposição à discordância, é lacônica, não tendo e não sentindo necessidade de justificar-se. O encenador limitou-se a usar com extrema modernidade as armas tradicionais de sua profissão – o delineamento exato das personagens, o emprego sutil do ritmo e da atmosfera – não recorrendo à imaginação a não ser para compreender e explicitar sem didatismos o texto. O que se vem discutindo desde a estréia é Arthur Miller, não Flávio Rangel, sinal que se sua função de intérprete entre autor e público foi exercida com rara competência e discrição. Os elogios que lhe cabem estão assim disseminados por todo o espetáculo – um dos mais harmoniosos que já vimos no teatro nacional. Emoção relembrada na tranquilidade foi como Wordsworth definiu a poesia. Pois não falta a Depois da queda nem mesmo esta serenidade poética, que transforma o próprio sofrimento, a própria violência, em verdades artísticas.

    Elogio semelhante poderia ser feito ao cenário de Flávio Império, um homem de teatro que, sendo arquiteto, pensa sempre espacialmente, preocupando-se não em compor um quadro, mas em fornecer um suporte para a ação; e, sendo artista, nunca se contenta com este estágio meramente artesanal, isto é, com a solução dos problemas de ordem prática. É um cenário simples e variado, funcional e abundante de plasticidade, oferecendo aos atores diversas àreas de representação à medida em que se vai desdobrando em novas surpresas para os olhos.

    Quentin – ele mesmo o diz – é um espelho que reflete as demais personagens. É pura consciência, pura subjetividade. Assim o interpreta Paulo Autran, como um homem mais de pensamento que de ação, dividido sempre pelo seu agudo senso de autocrítica. Haveria uma difícil questão técnica a resolver – distinguir entre as falas dirigidas às personagens e as endereçadas ao interlocutor imaginário – mas o ator passa com tanta maestria de um registro a outro que nem chegamos a perceber a dificuldade vencida. Num dos extremos do papel está a ânsia de saber toda a verdade sobre a conduta humana, inclusive a sua, o desespero, antes intelectual do que emocional, diante da impossibilidade de traçar fronteiras entre a sinceridade e a simulação. No outro extremo, aponta um sutil senso de humor, uma sombra de ironia – frente a Maggie, por exemplo, que ele trata como criança – que não chega a se impor porque não quer abusar de sua superioridade intelectual. Ele deseja ser mais humano do que os outros mas frequentemente o é menos, porque não se abandona ao fluxo da vida; quer ser mais compreensivo mas nem sempre consegue esconder um certo cansaço em face da estupidez alheia – será que os outros não compreendem nunca nada?

    Maria Della Costa, como Maggie, é ao contrário pura animalidade, pura inconsciência – qualidades não intelectuais que atraem poderosamente o intelectual – ou pelo menos essa é a imagem que fabricou para si mesma, o abrigo em que se refugiou. Quentin, em parte por amor, por atração física, em parte por enternecimento, comiseração, decide acordá-la do seu sono letárgico – mas esse despertar só poderá significar para ela, o confronto com as próprias inadequações. Maggie luta por adquirir uma nova personalidade, equilibra-se instavelmente entre a auto-afirmação, que se faz à custa de si mesma, encontrando paz apenas nos tóxicos e no suicídio. Não terá compreendido nada a seu respeito, no entanto, quem não adivinhar por baixo da sua afrontosa vulgaridade não só uma imensa generosidade – certamente muito maior que a de Quentin – mas também um núcleo de inteligência e de honestidade pessoal que nunca teve ensejo de se expandir.

    Lado a lado, Paulo Autran e Maria Della Costa formam um par perfeito, acompanhando com exemplar maleabilidade as variações do texto. Surpreende-nos não tanto a sinceridade, a emoção autência – virtudes que não faltam ao nosso melhor teatro – como o excelente domínio técnico. A cena do parque, em particular, o primeiro encontro entre os dois, não cremos que possa ser feita com mais graça e leveza em qualquer outro país.

    Marcia Real, na hierarquia dos desempenhos, viria logo a seguir. Toda a sua maneira de ser, desde o seu perfil até a sua dicção exata e cortante, serve para delinear a personagem: beleza sem feminilidade, inteligência sem agudeza psicológica, correção moral sem tolerância. Thereza Austregésilo – a terceira esposa – cumpre com eficiência a função quase impossível que o texto lhe reservou: não ser quase nada e sugerir quase tudo. Dina Sfat – a moça que abençoa Quentin – é a lembrança agradável e fugidia que deveria ser.

    Não há espetáculo em São Paulo, de alguns anos pra cá, que de uma maneira ou de outra não deva alguma coisa à Escola de Arte Dramática. A sua contribuição, no presente espetáculo, traduz-se no bom desempenho de três atores coadjuvantes. Ripoli Filho e Juca de Oliveira, desde a estréia, amadureceram extraordinariamente a importante cena que têm em conjunto, definindo com muita nitidez o antagonismo entre os respectivos temperamentos. E Sylvio Zilber – o irmão mais velho – passa discretamente pelo drama com firmeza que lhe é peculiar.

    Suzi Arruda e Carlos Garcia, (mãe e pai de Quentin) têm os dois desempenhos porventuda mais discutíveis: ela, porque Flávio Rangel deu à peronagem uma interpretação demasiadamente adversa; ele, devido ao vício, herdado do velho teatro, de não modular a voz, usando-a sempre com o máximo de intensidade. Mas não chegam a destoar.

    Depois da queda tem sido criticada sobretudo nos Estados Unidos, por trazer à cena personalidades reais, que ninguém terá dificuldade em reconhecer. Não é esse o nosso ponto de vista. “Tout au monde exist pour aboutir a un livre”, disse Mallarmè, resumindo numa frase todo o catecismo da arte – pois que se trata na verdade de uma religião. Para o escritor o que há de mais precioso no universo é a sua obra de ficção: ela é, ao mesmo tempo, o seu confessionário e seu pulpito. Nenhum terreno portanto lhe é interdito, desde que não se ponha em dúvida a sua boa fé. Depois da queda é sem dúvida, como se tem alegado, um “in memoriam” dedicado a Marilyn Monroe. Mas confessamos não ver nada de irrespeitoso em obra tão fundamentalmente dominada pela obsessão da verdade – qualquer que seja o preço que se tenha de pagar para chegar até ela.

    DÉCIO DE ALMEIDA PRADO

    DEPOIS DA QUEDA
    (1964)