COISAS E LOISAS
(1978)

X
  • REPERCUSSÃO (1/1)
  •  
    X
     
    Folha de S. Paulo,
    14 de setembro 1978

    Acervo Flávio Império

    © Érica Knapp

    A Festa popular de Flávio Império

    "Coisas e Loisas, a exposição que Flávio Império inaugurou ontem no SESC (rua dr. Vila Nova, 245) não é apenas uma mostra de seus últimos trabalhos mas a própria oficina do artista. Flávio Império transferiu todo o seu material do ateliê do Bexiga onde mora para o recinto da mostra: até o dia 30, ele vai trabalhar no local, acrescentando novas obras à exposição e conversando com as pessoas: "Coisas e Loisas: - nem sei porque escolhi esse nome, agora nem gosto muito mas eu acho que é para as pessoas perceberem o que estão entre o s quadros, os vãos e os vazios que devem ser preenchidos". A exposição fica aberta das 14 às 22 horas. Depois ela segue para uma galeria em Olinda, Pernambuco. 

    Na inauguração, em vez dos tradicionais aperitivos e salgadinhos houve café com bolo de fubá porque a exposição é dedicada às crianças e/ irerês (crianças na umbanda). O motivo central é São João Menino e Cosme e Damião, os santos padroeiros da infância e festejados em setembro. Flávio Império diz que escolheu este tema porque quando iniciou o trabalho era dia de São João e "sou muito festeiro, festejo o tempo inteiro".

    A procura de festas populares ele viaja constantemente pelo Brasil inteiro para participar das comemorações dos ciclos natalinos, da festa do Divino, dos bailes juninos, das rodas e cirandas. Segue a pé, de ônibus, barco ou canoa:

    "As conversas que eu tenho com as pessoas pelos barcos e navios do rio Amazonas ou pelas rodoviárias do Acre e Rondônia vão me dando uma visão mais clara do que é o Brasil, bem diferente da visão heroica dos livros de história. Eu decidi que meu mestrado e doutoramento seriam feitos tendo como fonte de informação as ruas e as praças".

    Flávio Império cita Caetano Veloso - "o povo brasileiro é extremamente musical"- para dizer que a capacidade criativa do brasileiro também é muito grande:

    "Ele é extremamente visual. É impressionante a inteligência construtiva do brasileiro que, com palha, taquara e terra, resolve todos os problemas de "design" desde o chão até o teto, fogão, utensílios de uso; e com uma incrível habilidade técnica."

    Estandartes, motivos populares, mastros de festas juninas se misturam em "Coisas e Loisas", uma exposição que lembra cenário de uma peça teatral, de um circo ou de uma festa popular. E é definida por Flávio Império como "uma imagem que vai se desdobrando como num jogo até chegar numa imagem arquétipa que é a bandeira ou o estandarte; nesta exposição eu uso todas as técnicas, desde a litografia até o silkscreen e todos os tipos, do lápis de cor até o acrílico."

    Flávio Império diz que atualmente se sente muito livre para misturar arquitetura, teatro, artes plásticas, produção industrial, tudo para "tirar a pintura do cavalete e se possível, passá-la par ao chão e o teto, conquistando o espaço."

    Muita coisa, ele diz, ainda não é possível fazer. As pessoas embora situadas no final do século 20 ainda tem uma mentalidade antiquada e ainda é necessário fazer uma mediação entre o artista e o espectador. Por isso, "num esforço de disciplina "ele ainda é um artista bem comportado. 

    O primeiro desenho de Flávio Império, cujo o último trabalho em cenografia é "Por um Beijo"(show da cantora Célia, no teatro Pixinguinha), foi um barquinho publicado no suplemento infantil desta Folha. 

    "Era um barquinho ridículo assim como todos os demais mas meu pai recortou e eu morri de vergonha, naquele tempo já tinha vergonha de ver minhas coisas publicadas no jornal". Flávio Império tinha 7 anos e como menino prodígio já tocava piano e violão ("era o pequeno Mozart do Bexiga").

    Depois, ele ganhou uma bolsa na extinta Escola de Artesanato no Museu de Arte Moderna e ingressou na Faculdade de Arquitetura da USP. Neste tempo começou a se interessar pelo teatro mas tinha preconceito contra o profissional, achava tudo uma "babaquice". Ligou-se, então, ao grupo de teatro amador de uma comunidade de operários chamada "Cristo Operário, situada na Estrada do Vergueiro.  Uma pequena indústria onde os próprios operários eram donos da produção, a experiência-piloto coordenada pelo padre dominicano João Batista e que durou cinco anos. No grupo teatral, Flávio Império fazia de tudo: escrevia, dirigia, criava o cenário. Sua primeira peça foi "Pluft, o Fantasminha".

    Mais tarde, encontrou-se com o grupo do Teatro de Arena, gostou e ficou com ele. Fez a cenografia de "Gente como a Gente", de Roberto Freire e em 1959, a de Morte e Vida Severina, onde atuavam Cacilda Becker e Walmor Chagas.  Com Guarnieri, Boal e outros foi um dos fundadores do Teatro de Arena onde trabalhou (continuou fazendo de tudo, da administração até a cenografia) desde "Os Fuzis da Senhora Carrar" até a última peça da companhia - "Arena Conta Tiradentes". Trabalhou também com José Celso no Teatro Oficina e desta época lembra com entusiasmo as cenografias que fez para "Andorra" e "Roda Viva".

    Mais: fez o cenário dos shows de Maria Bethânia dirigidos por Fauzi Arap e para as peças "Pano de Boca", "Ponto de Luz" e o espetáculo "Os Doces Bárbaros". Com Myriam Muniz, trabalhou em "Dorotéia" e "Por um Beijo". Dirigiu ainda a peça "Os Fuzis da Senhora Carrar" para o TUSP (Teatro da Universidade de São Paulo) e o show de Gal Costa "Caras e Bocas". Fez também incursões pelo cinema criando cenografias dos filmes "O Profeta da Fome", de Maurice Capovilla e "Os Deuses e Os Mortos", de Rui Guerra. 

    Embora muito conhecido como cenógrafo, Flávio Império não gosta de expor em galerias onde o artista, diz, "é obrigado a seguir um mesmo esquema, ter um mesmo estilo, uma espécie de marca registrada que deverá ser comercializada e consumida, imposta pelos donos das galerias". E nunca foi convidado para expor em museus. 

    "As galerias são sarcófagos e nelas ocorrem as vernissages onde as pessoas só ficam de costas paras as pinturas, bebendo, fazendo fofoca e interessadas com quem vão dormir aquela noite".

    Para Flávio Império uma exposição tem que ser uma festa, algo onde o artista e as pessoas realmente se encontram. Por isso, ele é um grande "festeiro": há alguns anos ele promoveu a festa dos "Alegres Pintores" no Bexiga, que virou uma exposição itinerante pelos teatros do bairro e só terminou porque "era como num circo, só montar, desmontar, cuidar da iluminação: dava uma tremenda mão de obra". Em 74, organizou a estreia da Escola de Teatro Macunaíma - a festa "Sou Pedro, Sou João, Sou Antônio" que durou três dias, com muita fogueira e bolo de fubá.

    "Desde pequeno gosto de festa de rua e elas continuam a me interessar porque são mais humanas do que as festas com uísque na mão, que eu acho muito chato. Já estou velho para as discotecas mas destas até gosto, por nestas o pessoal dança mesmo e se descontrai"

    Flávio Império, 42 anos, se define como um artesão "embora este muitas vezes tenha que repetir coisas e eu detesto fazer isso, apenas me adapto". Segundo ele, seu intenso trabalho tem o poder de uma terapia, caso contrário, já estaria internado num sanatório. 

    "Só me sinto equilibrado quando trabalho 14 horas por dia". Ou quando está numa de suas viagens pelo Brasil que duram, cada uma, dois meses e meio. 

    Flávio Império deixou de ser professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde lecionou "Programação Visual", durante 14 anos, para se tornar um artista livre, sem ligações com empresários e galerias, identificado com o povo.

    "Eu não vou buscar inspiração no novo, eu sou do povo".

    "Coisas e Loisas" vai apresentar também dois filmes de autoria de Flávio Império. O super8 sobre as tecedeiras da Região do Triângulo Mineiro (uma obra feita especialmente para a exposição de Edmar de Almeida e Lina Bo Bardi no Museu de Arte de São Paulo) será apresentada no dia 20, e o filme "Pequena Ilha da Sicilia" feita em parceira com Renina Katz para o curso de pós-graduação "Ecologia Urbana", de Aziz Ab'Saber na FAU, será exibido no dia 30. Os filmes são originais, não tem cópia; e por isso, Flávio Império faz o apelo:

    "Quem quer copiá-los? Eles são documentários de uma cultura que está sendo estraçalhada pela cultura atual, que vem e destrói tudo o que havia anteriormente".

    ERICA KNAPP

    COISAS E LOISAS
    (1978)