A FALECIDA
(1979)

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  • DEPOIMENTOS (1/3)
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    Texto manuscrito para o programa do espetáculo
    Acervo Flávio Império

    © Flávio Império

    Nelson Rodrigues escreveu A Falecida para um palco nu. Sem a ilusão do espaço simulado para cada cena. Isso permitiu uma fluência de linguagem apoiada totalmente na interpretação e na luz.

    Osmar Rodrigues Cruz concebeu seu espetáculo com cenografia. Eu fui escalado para o crime.

    Com a máxima cautela, peguei um lápis e procurei me ater às áreas mais vitais da estrutura limpa e clara com a qual ele montou seu drama chamado, em subtítulo, tragédia carioca.

    Minha atenção se ocupava sempre em não cortar nervo, nem músculo, nem osso. (Como um médico mediúnico, tive de operar sem sangue.) Por dentro dos intervalos e frestas da minha memória, fui colhendo uma malha sutil como uma teia e tecendo uma arquitetura oca e vazia e transparente.

    O prazer e o pecado; a vida e a morte; os opostos simétricos que encontrei no sub-texto, foram os pontos em que esse emaranhado de linhas transparentes pousaram seus nós chave: o quarto de casal e a funerária; a cama e o anjo da morte, em oposição clara, como num “cenário” medieval. (Pois o fundo do fundo é ainda o Bem e o Mal).

    Todas as outras cenas são réplicas desses protagonistas: comentários sociais da trama básica: a família, os amigos, os vizinhos etc, fragmentos de um papel que revela o “consciente” coletivo, os olhos, os ouvidos e, principalmente, a “língua” do povo... a “cidade”.

    Fragmentos de uma arquitetura de múltipla significação, organizam um palco dentro do palco, permitindo fluência, fusão, corte, flash-back, da linguagem mista entre cinema e teatro, que o autor usa com extrema precisão.

    Com esses elementos, o 1º e o 2º atos se completam. Fosse Nelson Rodrigues romântico e sua “dama das camélias” terminaria aí.

    O terceiro ato parte de outra simetria: o triângulo. Onde se descobre que Arlequim já era um Pierrot e não sabia, traído que fora, há muito, pela Colombina: o drama da infidelidade conjugal. Enfim, o núcleo que justifica a morte da já falecida Zulmira. O prazer encontrado fora do casamento é pecado mortal, diante do teatro “social”, do inconsciente “religioso” e do machismo do marido “corneado”.

    Um palco dentro do palco se abre em “ambiente de falso luxo”. Como se fosse uma ópera grandiloquente. Como num psicodrama, a “verdade” é revelada aos olhos e aos ouvidos do marido. O avesso do direito é conhecido nu e cru. Um pouco além do que a pudica tesouro permite aos filmes e novelas dos horários nobres.

    Um clássico de futebol encerra o drama em pleno Maracanã, como um gran finale para essa “fábula bem brasileira” que é A Falecida, também já clássica da dramaturgia.

    Sempre tive muito medo dos clássicos. Uma espécie de fetiche cultural subdesenvolvido da minha parte.

    FLÁVIO IMPÉRIO

    A FALECIDA
    (1979)