LABIRINTO: BALANÇO DA VIDA
(1973)

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  • DEPOIMENTOS (3/4)
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    Programa do espetáculo
    Composição gráfica de autoria desconhecida

    © Walmor Chagas

    Eu curto mais Fernando Pessoa do que Shakespeare

    Eu volto mais aos poetas do que aos dramaturgos. Mas minhas noites de solidão, de angústia, não vou ler uma peça de Ibsen. O que me acompanha é Fernando Pessoa. Então, por que não fazer no palco isto que eu gosto? E que tem muita gente que gosta?

    O ator está sempre se revelando através dos personagens que interpreta, mas nunca eu pude me revelar tanto como em LABIRINTO: BALANÇO DA VIDA. Apesar de ser também um personagem, aqui é onde eu sou mais eu. A poesia é mais fácil de fazer, é mais direta. É certamente mais difícil de receber, mas ela expressa certos pensamentos de uma maneira muito eficaz. Eu não gostaria de fazer outra coisa agora. Por isso, estou tão empenhado. Eu me dispo, eu grito, eu me exponho no palco. Porque eu preciso de todos. Até me pergunto se eu não quis sempre fazer isso? Será que eu não procurei sempre a poesia, mesmo nos dramaturgos? Difícil é encontrar a forma de fazer o que eu possivelmente sempre quis. Estas poesias foram feitas para serem lidas, mas eu me dou de tal maneira que acho que consigo passar a idéia, a emoção. Talvez do ponto de vista cultural, seja um suicídio fazer isso, mas é certamente também um ato de fé. Na gente que faz, nos poetas, nas pessoas que vão ouvir.

    O espetáculo tem um roteiro que é mais do Flávio Império, onde o habitante das nossas cidades, o homem neurotizado e cansado, descobre que existe mais alguma coisa no universo do que o metro de espaço que ele tem a sua frente. E ele viaja.

    Viaja para o seu interior, percorre o labirinto e suas perplexidades de convivência feliz com o cosmos, a espiritualidade talvez.

    Isso tem muito que ver comigo, em termos biográficos. Eu estava aqui na cidade, percorrendo o labirinto cheio de câmeras de TV e cenários de teatro, quando fui para o Rio Grande do Sul. O paraíso.

    Antes, à quase letargia em Nova Iorque. Mas o que importa é o paraíso, o campo onde eu morava, o amor bem curtido, a descoberta da criança em minha filha.

    Tudo isso com grande tranquilidade. Eu já tinha aprendido a conviver com a morte, já tinha descoberto a morte antes de Cacilda morrer, já sabia que viver/morrer era a mesma coisa. Isto eu senti, sim, eu senti em Nova Iorque ainda numa outra viagem. E comprovei depois, vindo para São Paulo fazer Esperando Godot, quando o carro capotou em Rezende e eu pensei – vou morrer – assim, simplesmente, sem dramatismo, a música ligada no rádio deixando tudo ainda mais bonito.

    Antes disso, antes do mergulho em mim lá no Rio Grande do Sul, eu não teria coragem de estar aqui, em 1973, dizendo poesia. Eu procuraria uma peça, talvez um filme. Eu armaria defesas. Eu não sou um ator de 20 anos, saindo da Escola de Arte Dramática, sem responsabilidade nenhuma além dele. Eu sou responsável, sou absolutamente responsável, sou careta. É como um bancário que tem família, necessidade de conforto, um carro e muita responsabilidade mas gosta de pontas. Ele chega a gerente do vanco, mas um dia deixa o emprego e vai pintar. Ou pregar Alan Kardek nas praças.

    Ele estaria ganhando a vida, embora, é clao, já a viesse ganhando antes como eu também me gratificava com o que fazia. Eu sempre poderia fazer uma viagem interessante com o dinheiro ganho numa novela chata. E isto é gratificante. O próprio jeito de sobreviver também pode ser gratificante, embora às vezes seja duro. Mas deve ser até para o índio. Não sei por que a gente deve imaginar a caçada sempre como algo excitante. O índio não pode estar sempre querendo caçar, mas ele tem fome, então vai.

    O outro trabalha oito horas por dia. Eu não recuso, então, a vida dura da cidade e do labirinto. O que eu acho é que a vida da gente não pode ser só a caçada, a sobrevivência. Mas ela existe. Agora, eu estou fazendo o que gosto: dizer poesia. Tem o que gosta de escrever, de cozinhar ou de construir casas. Mas todos gostam de fazer também outras coisas.

    Este espetáculo é para essa gente, para o que gostam das coisas que fazem. Se alguém gosta do que faz, é porque aprendeu a fazer. E para aprender, precisou curtir longamente o que faz. Porque curtiu, ele gosta. Então, ele vai entender que este meu trabalho é um trabalho curtido, um trabalho de que eu gosto.

    Aí poderiam me perguntar: e por que não só a poesia, por que o espetáculo, as músicas, as fotografias? Eu respondo: a grafia e a leitura evoluíram. O cara que lia um tijolo na pré-história, só lia aquilo. Hoje, você lê, ouve e vê o tempo todo, nos outdoors, na TV, no cinema. Às vezes, basta uma imagem pra te contar, ou apenas um som. Isto faz parte do nosso cotidiano, este excesso de grafias. E por que não enriquecer a sua grafia e, consequentemente, a sua leitura? É o que fizemos, inclusive, a poesia nem precisaria ser dita, ela pode ser lida.

    Quando eu falo um poema, ele passa para outra esfera. Por que não ir para esferas ainda mais distantes?

    De tudo isto, eu penso uma coisa: talvez eu esteja querendo exercitar meu coração. Eu quero viver dele, não do raciocínio, que estava me pondo num beco sem saída, que não deixava por pra fora o que tenho de melhor. Ou o que gosto de fazer: dizer poesia.

    WALMOR CHAGAS

    LABIRINTO: BALANÇO DA VIDA
    (1973)