DEPOIMENTO DE FLÁVIO IMPÉRIO A MARGOT MILLERET
(1985)

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Depoimento de Flávio Império a Professora Margot Milleret, Dept. of Spanish & Portuguese, Vanderbilt University, Nashvill, Tennessee. 1985
Editado por Maria Thereza Vargas
São Paulo, 2012

© Flávio Império

Existe uma ponte entre o Teatro de Arena e o que eu fiz anteriormente: trabalhei com um grupo de teatro, em uma  Comunidade fundada por um frade da Ordem Dominicana. Esse frade tinha trabalhado na França como padre operário, uma experiência da Igreja Católica, naqueles tempos. Quando voltou´para o Brasil não conseguia viver dentro do Convento e com licença da Ordem fundou em 1950 uma Comunidade na Estrada do Vergueiro, Vila Brazílio Machado, um bairro operário. Poucos anos depois, naquele mesmo local criou uma “comunidade de trabalho”, onde os operários eram os donos. Uma pequena fábrica de móveis, muito bonitos, muito racionais como construção. Chamava-se Unilabor Móveis. Havia na Comunidade uma Biblioteca e nessa Biblioteca, uma Escolinha de Arte. Me convidaram para fazer uma peça com as crianças que freqüentavam a Escolinha. Gostaram tanto de mim que me pediram para ficar como responsável também pelo teatro adulto, feito pelos operários, num teatrinho, ao lado da Capela da Comunidade. Trabalhei lá quatro anos.

No meu último ano de trabalho no Vergueiro, já estava amigo do pessoal do Arena. Por coincidência o Teatro ficava entre o escritório de arquitetura, onde eu fazia estágio e a minha casa. Passava pela porta do Arena, todo o dia. Minha jornada de trabalho  coincidia com o intervalo entre os ensaios e o espetáculo à noite. Estavam todos eles na porta e ficávamos horas conversando sobre o teatro e suas teorias. Foi assim que fiquei amigo do pessoal : Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri,  Augusto Boal. Aliás o Boal me convidou até para formar o Departamento Operário do Teatro de Arena, porque  haviam visto  meu trabalho no teatrinho e tinham gostado. Ainda  chegamos a fazer uma apresentação  com o grupo do Vergueiro, no Arena. Não trabalhava ainda no Arena , mas era amigo de todos eles. Assistia a tudo que eles faziam. Comecei fazendo trabalhos gráficos. Fiz o programa e o cartaz para Chapetuba Futebol Clube. Me integrei ao grupo e no espetáculo seguinte, Gente como a gente, de Roberto Freire fiz a cenografia. Era a primeira vez que trabalhava em arena. A mudança não foi difícil porque houve um período intermediário, em meus trabalhos. Eu e alguns outros fomos expulsos da Comunidade, acusados de esquerdismo, fabricado – acho – na cabeça da direção da Comunidade (1) e o grupo de teatro saiu junto comigo. Montamos então, um tablado e fazíamos espetáculos em clubes de futebol e sociedades amigos do bairro. Então muitas vezes tivemos espectadores posicionados ao redor. Quando nos apresentamos no Teatro de Arena, montamos o tablado, e como estávamos habituados representamos sem dificuldade. O salto, portanto, não foi grande.  Só que não tínhamos um espaço teatral definido. No Arena, evidentemente, o espaço teatral era definido , embora fosse muito precário. Quando Josef Svoboda, cenógrafo tcheco esteve em São Paulo estive com ele quatro dias e como  trabalhava no Arena,  levei-o  até lá e ele ficou muito entusiasmado, porque tinha começado a trabalhar num teatro exatamente com aquelas proporções.

Posso dizer que já conhecia de antemão o método do trabalho do grupo. Influía, inclusive no pensamento deles. Todos eles tinham uma formação universitária, mas técnica, não era nem literária. Uns faziam engenharia e o Boal, por exemplo era formado em Química. Eu era o único que tinha uma formação artística mais geral. Conhecia música, pintura, escultura, ou seja, tinha mais informação sobre o universo da arte do que qualquer um deles.Então, muitas vezes recorriam a mim para discutir coisas que não dominavam.

Boal disse em entrevistas que antes de mim não havia cenografia no Teatro de Arena. Não era bem assim. Antes quem fazia cenografia era o próprio diretor do espetáculo. Como todas as peças eram realistas e atuais, ele apenas escolhia, no caso dos figurinos, roupas dos próprios atores. Quando se tratava de um espetáculo mais de época, recorriam a algum artista para desenhá-las e contratavam uma costureira. Os móveis traziam de casa ou arranjavam em alguma loja. A produção sempre foi muito pobre. Existia no trabalho do Arena um dado fundamental : procurar determinar uma linguagem que fosse brasileira, em contra-facção ao que se fazia no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) . Lá se processava uma linguagem internacional, européia, sobretudo italiana.

A mesma pesquisa que se fazia em literatura, através dos Seminários de dramaturgia ou em  Laboratórios de interpretação, eu procurava fazer com a imagem em cenografia, procurando estudar o comportamento do brasileiro, através de elementos visuais, vendo candomblé, carnaval,  todas as manifestações populares e documentando o que via, da forma que me era possível. Observava o modo pelo qual se tornava muito nítido a característica do estudante da época, ou do comerciante ou do industrial, ou do bancário. Observava como políticos se vestiam, como o povo se vestia no cotidiano. Desenvolvia   um trabalho antropológico, trazendo para o teatro a imagem que tínhamos de nossa própria sociedade. Talvez tenha sido a primeira vez que se fez isso, de forma sistematizada. Porque, geralmente, se fica fazendo "teatro teatral", entre aspas, dentro de uma maneira convencional de tratar o assunto. E, como não tínhamos uma formação acadêmica em teatro - ninguém tinha estudado teatro ( acho que só o Boal tinha estudado teatro nos Estados Unidos) - então para nós, o teatro era uma coisa absolutamente intuitiva. Todos nós tínhamos feito outros cursos.No começo não sabia, mas depois percebi que a intuição teatral é uma característica de determinadas pessoas, um jeito de parecerem mais fortes. Através da intuição saca-se a solução. Ela vem, evidentemente, por  uma característica particular sua de conseguir captar a realidade de um determinado jeito e responder de uma maneira teatral. Então eu, no começo, não conhecia esses mecanismos e achava que tudo dependia de pesquisa, de observação sistemática e de organização. Fui vendo, depois, que isso dependia de muito esforço e muitas das soluções que  havia encontrado, às vezes, não decorriam tanto da pesquisa, mas diretamente da intuição. E, principalmente, do que acontece quando você trabalha em grupo. 

Teoricamente, do ponto de vista dramatúrgico, a única pessoa que tinha sistematizado alguma coisa, era o Augusto Boal. Partindo do teatro tradicional tentava atingir à possibilidade de se trabalhar a linguagem teatral de uma forma nova. Boal chamava de teatro aristotélico todo o teatro de empatia. E, através de Bertolt Brecht, chamava de novo, o teatro  de esclarecimento, que colocasse em cena os conflitos basicamente sociais e não psicológicos.

Então, essa divisão meio esquemática, foi útil porque dividiam-se as águas e toda vez que se separam águas, tem-se mais clareza para pensar. Um grupo de escritores que nunca tinha escrito para teatro reunia-se com Boal, semanalmente e depois analisávamos cena por cena do que tinham escrito. As sessões duravam em média seis horas e cada cena era esmiuçada por ele, valendo-se da formação teórica que aprendeu na Columbia University, em Nova York . Fui conhecendo todas as formas tradicionais de dramaturgia de tanto  ouvir a análise e discussão das peças que estavam sendo escritas. As peças anteriores ao Seminário foram escritas por intuição. Gianfrancesco Guarnieri fez Black-tie, num ímpeto. Não tinha informação teórica, foi pura intuição poética. Discutiu-se muito Revolução na América do Sul, mas com a peça depois de pronta. Boal pôs em prática seu pensamento. Foi sempre muito organizado. As peças que escreve  são traduções do que pensa ser o teatro, não são inspiradas.  Revolução é muito mais interessante como leitura, do que como encenação. O pensamento do Boal é muito matemático. Cada cena da peça parecia um pequeno teorema sendo demonstrado. E depois que se toma conhecimento dessa demonstração, milhões de vezes durante a peça, chega uma hora que a gente se farta. Descobre-se o esquema que ele está querendo passar. Mas de qualquer forma não deixa de ser importantíssima, talvez a primeira feita, à maneira de Brecht, que se escreveu no Brasil. Depois virou formulário. Foi feita muita coisa parecida, mais ou menos do mesmo jeito.

O teatro no Brasil inteiro era de esquerda. Nunca existiu um teatro de direita. O próprio Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) que era acusado de ser de direita, nunca foi de direita. Era uma coisa realmente emigrada, mas não era de direita, de jeito nenhum. Os autores que eram montados lá eram montados no mundo inteiro, críticos e poetas de muita importância. Alguns até extremamente de esquerda. Mas como era feito especificamente para uma burguesia rica, era visto como de direita. O mais curioso  é que o Boal queria que fôssemos lá para tomar conhecimento de um teatro de direita. Mas o TBC não era de direita ...

Acho muito engraçado os nomes Teatro de Arena, Teatro Oficina. Fiz parte das duas equipes. Tinha plena consciência que não eram nem Teatro de Arena, nem Teatro Oficina. Eram Augusto Boal e José Celso Martinez Corrêa. Isso porque o teatro dos anos sessenta se construía em cima  da pirâmide do diretor. Era uma porção de substratos necessários que apoiavam a idéia básica do animador. Os grupos se formavam em torno deles. E nos anos sessenta, os dois maiores animadores foram Boal e Zé Celso. Diziam que Zé Celso tinha uma formação fascista, porque fez parte de grupos integralistas. Diziam também que o excesso de psicologismo vinha dessa origem fascista. No fundo também um esquematismo político de análise. Não tinha nada a ver. O fato é que Zé Celso conhece muita literatura, muita poesia e é uma pessoa muito sensível. Para ele, os esquemas de tradução das idéias políticas do Boal eram absolutamente insuficientes. E...vejamos as contradições : o Boal dirigiu no Teatro Oficina, Streetcar named desire, do Tennessee Williams e Zé Celso nunca fez nenhum Tennessee Williams. Boal não gosta e fala mal do Tennessee Williams, mas, no entanto, foi um dos melhores trabalhos de direção que ele fez, inclusive como direção realista. Foi uma das coisas mais bem escritas que dirigiu. Não quero dizer com isso que toda a produção  dos Seminários de dramaturgia não fosse interessante. Dava-se importância às coisas populares pela primeira vez. Mas, os textos não eram muito ricos, do ponto de vista poético. E o Tennessee é um grande escritor e o Streetcar é um barato como construção dramática. Uma coisa absolutamente perfeita. Tanto para mim, quanto para o Boal foi muito bom termos feito. Quando ele foi convidado pelo Zé Celso para dirigir essa peça, eu me apresentei para fazer o cenário. Foi a primeira vez que eu cheguei para um diretor  e disse : “quero trabalhar nisso, mesmo que não me paguem.” E ele me disse :” eu ia te convidar mesmo ” Já tínhamos trabalhado juntos. E diretor fica viciado em cenógrafo com quem costuma trabalhar. É impressionante ! Parece até dupla ! 

Havia uma grande colaboração entre nós, no Arena, apesar de criar uma certa dificuldade, o fato do Boal dirigir as peças. Ele era o diretor, afinal.  Paulo José, por exemplo é muito pouco citado. E ele é uma pessoa incrível, tem uma ótima formação. É gaúcho e o pessoal do sul tem um nível de informação maior que a nossa. Estudam mais. Tem mais contacto com a literatura espanhola, coisa que o resto do Brasil ignora. A mãe do Paulo José lia poesia espanhola para ele desde criança. Ele tinha uma formação poética muito grande e isso foi ela passou para ele. Quando o Arena montou  o Lope de Vega, Paulo José participou da adaptação e influenciou na própria escolha do texto, exatamente pela sua formação literária. Conseguia mesmo, participar dos esquemas de adaptação. Eu já não conseguia. Por mais que eu dissesse que era um absurdo o cenógrafo não participar da construção do espetáculo, nunca consegui justificar isso para o Boal. 

Boal ganhava porcentagem como adaptador, como autor, etc. Era uma das formas dele garantir uma situação diferenciada. Boal é do signo de macaco, no horóscopo chinês. Só descobri isso depois. É uma pessoa muito viva. Aliás se não fosse a vivacidade dele, provavelmente o Arena não teria sobrevivido muito tempo. Ele sempre inventava um jeito financeiro de tocar as coisas pra frente. Nós realizávamos, mas ele tinha uma inteligência prática muito objetiva. Aliás, coisa que nenhum de nós tinha. Boal manteve vivo o teatro. As nossas soluções eram sempre de pedir emprestado, de botar coisas da família no prego. As soluções dele eram sempre muito mais agressivas: exigir financiamento, exigir verbas, etc. E as nossas soluções eram de resolvermos com coisas da gente. E isso acabava fazendo com que se reconhecesse a autoridade dele no grupo, porque conseguia,inclusive, segurar a barra, orientando-a de forma mais objetiva. E nós éramos muito pouco objetivos. Eu era professor universitário, não precisava daquilo para viver. Não percebia, mas no meu caso era uma coisa completamente alienada, do ponto de vista econômico. Para ele, sempre foi a forma através da qual viveu, e então nunca foi alienado. Todos os fracassos, ele conseguia transformar em sucesso, de algum jeito. Ou porque viajava, ou então porque fazia escândalo na imprensa. Criava alguma coisa para fazer que a coisa crescesse.    

Os atores participavam de todos os Seminários. Não era obrigatório, mas eu também participava. Podia-se faltar, de vez em quando. Mas os atores sabiam de tudo que estava acontecendo, porque as normas eram as mesmas. As mesmas normas  que orientavam a construção da dramaturgia , orientavam também os trabalhos de interpretação. Tínhamos uma disciplina de trabalho que ocupava o dia inteiro. Os atores chegavam no máximo às duas horas e ficavam até seis horas fazendo Laboratório, com ou sem Boal. É que ele ora estava no Seminário, ora escrevendo, ou então não estava no teatro. Eu participava, praticamente, de todos os Laboratórios, porque eram muito interessantes Neles, por exemplo, se percebia a relação que existe entre objetos e interpretação. Como um objeto pode apoiar a interpretação, como uma pausa pode ser preenchida pela relação entre o ator e o objeto, deixando o conteúdo que se quer passar muito mais nítido. Fazíamos isso à tarde. Os atores trabalhavam com uma grande autonomia intelectual, porque todos tinham a mesma formação. Pela primeira vez tinha um grupo com formação universitária. Os teatros eram feitos mais por intuição (sic). E de repente, o Teatro de Arena era um grupo de universitários, com formação diversificada, mas era um grupo que tinha treinado, principalmente a mesma cabeça, na observação sociológica, política, etc. Tinha-se a mesma disciplina, lia-se os mesmos livros e o nível era idêntico, possibilitando as mesmas leituras. Líamos demais, demais. Era infernal o quanto a gente lia e o quanto a gente discutia o que lia. Tudo o que fazíamos parecia conter uma base teórica.Uma coisa muito importante também é que o Arena ficava muito perto da Faculdade de Arquitetura, da Faculdade de Economia e da Faculdade de Filosofia. Todas ali no Centro. A Cidade Universitária ainda não estava pronta. Era tudo pertinho, tudo próximo à rua da Consolação, que fazia esquina com a av.Ipiranga. Então o que é que acontecia ? – A mulher do Boal fazia o Curso de Ciências Sociais e eu era professor da Faculdade de Arquitetura, Apenas com esses dois pontos a gente conseguia fazer um rebuliço. Um dos nossos assessores era o Anatol Rosenfeld, um teórico maravilhoso, judeu que chegou ao Brasil com uma grande formação marxista e que conhecia o Brecht de cor. Participava de alguns Seminários e estava sempre no Arena, discutindo com a gente.Acontecia também que o Boal e o Sábato Magaldi eram muito amigos e o Sábato era o noticiarista do O Estado de S.Paulo e crítico teatral do Jornal da Tarde.  Reuníamos, em torno do Teatro, a crítica e a informação teórica de muitos setores e da própria Faculdade de Filosofia. O Roberto Schwarz era íntimo da gente. E muitos outros professores também : professores de Economia, Sociologia, Filosofia, Teoria Literária, Literatura. Fora um monte de professores da Arquitetura (FAU), que através de mim freqüentavam o Teatro de Arena. Quem fotografava os espetáculos eram os meus colegas da Faculdade. Logo, o Arena, não era uma ilha. Tinha uma penetração e um intercâmbio, praticamente, com a intelligentsia da época. Era um dos grandes centros intelectuais. E com isso se pode imaginar a repercussão que tinha junto às Faculdades. Cada vez que se estreava um espetáculo, todas as Faculdades vinham ver. E gostavam muito, porque o que se fazia correspondia ao pensamento da época. O pensamento mais refinado estava traduzido nos espetáculos do Teatro de Arena, da mesma forma que também eram traduzidos no Teatro Oficina, porque também eles reuniam essa gente toda. Tudo era muito perto e a gente se conhecia. Tínhamos, principalmente uma visão crítica do que estávamos fazendo, porque todo mundo discutia com a gente. Inclusive nenhum dos críticos era bonzinho. Todo mundo dizia mesmo o que achava. Tudo era posto em discussão. Tínhamos que enfrentar essa convivência inteligente.

Nos movia um interesse pelo Brasil, seus problemas e sua afirmação. A interpretação dos atores deveria ter um caracter mais brasileiro.  Tentava-se, nos Laboratórios, como no Actors Studio, uma maneira mais espontânea de se reagir a cada emoção específica, contida no texto. Em primeiro lugar o texto era analisado palavra por palavra, a nível de você poder expressar um sentimento, uma emoção daquele personagem, dentro daquele quadro social, examinado exaustivamente. E os Laboratórios tinham por finalidade fazer com que o ator encontrasse a maneira mais relaxada, a maneira menos formalizada, a maneira mais espontânea e natural de se processar a comunicação. Primeiro porque não existia a distância que tem do palco italiano para a platéia. Era tudo muito próximo. O Teatro media quatro por quatro e meio metros. Um tabladinho. Cento e cinqüenta pessoas sentadas. O público ocupava três fileiras só. Uma fileira a mais, batia-se com a cabeça no teto. Cento e cinqüenta pessoas reunidas em torno de um tablado de quatro por quatro e meio, recebia-se cuspe na cara, o tempo inteiro. Era muito íntimo mesmo. Sendo assim, a representação tinha que ser reduzida ao mínimo teatral. Não era como no palco, que se tinha que atingir trinta metros de distância. A voz não precisava ser trabalhada tecnicamente. A movimentação não exigia  grandes treinos técnicos. Então tudo isso facilitava a busca de uma comunicação dentro de um plano cotidiano. Não era preciso formalizar. No Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) estudavam pra burro a colocação da voz. Ficava todo mundo falando um pouco assim... Tinham que atingir lá longe. Traziam pessoas para ensinar os atores  falarem  um português correto. E a gente falava a gíria que estava na moda. Queríamos a comunicação no plano do cotidiano imediato. Isso exigia que os intérpretes prestassem muita atenção na maneira de falar do dia a dia. E o comportamento também. Era tão diferente a maneira de atuar de cada um dos dois teatros que, quando você ia ao TBC, você achava aquilo estranho, não parecia teatro. Um dos dois não devia ser teatro. O TBC era formal. Representavam como Miss Fulana, ou Mr.Fulano ( atores ingleses ou mesmo americanos), No Arena dava-se o contrário. Representavam bababa...bababa... Esse meu jeito de ser é muito do Teatro de Arena.

Falava-se do povo. Isso também era um romantismo da época. Porque a final de contas todo mundo ali era pequeno-burguês, falando da população operária marginal. E que grande contacto tinham tido com a classe operária ? Nenhum. E que vivência ? Também nenhuma. Então nossa visão não se diferenciava muito da visão do José de Alencar falando de índio. Acho que ele nunca tinha visto nenhum índio. Era uma espécie de ideologia, filtro para a realidade. Não era a realidade que era filtrada. Tudo era filtrado através do autor que não saia de dentro do teatro e ficava lendo livros teóricos. Então os autores se enchiam de obrigações ideológicas e quando escreviam...eram... como o José de Alencar. Mas, o engraçado é que no final era uma experiência realista. De um certo tipo específico de realismo. E, aliás, no Brasil – é preciso que se diga – é tudo muito grudado. Não é preciso sair correndo atrás de um operário para saber como ele é. Vivemos, mais ou menos nas mesmas circunstâncias. Mas, de qualquer forma, ninguém tinha uma vivência específica do meio. Quem tinha mais era eu. Os outros não tinham mesmo. O Boal não tinha nenhuma. Era tudo de informação. Gente de teatro se enfia no teatro e não sai dali.

Sem querer tudo acaba sendo uma coisa formal. Então, o povo que eles falavam era traduzido por um conjunto de normas teóricas de uma dramaturgia que estava sendo estudada. Claro que era um formalismo diferente porque tinham outras características. Se examinarmos o Teatro do Oduvaldo Vianna,  pai do Vianninha é um teatro muito mais espontâneo, muito mais divertido porque fala de pessoas iguais a ele. É um retrato da pequena burguesia da época. E o esforço do Arena a fim de discutir problemas da classe operária do Brasil  era o de representar uma classe que não estava nem na platéia. Mesmo que não trouxesse a verdade do personagem, trazia a verdade da interpretação do fato. Era um romantismo assumido, porque não tinha outra saída. Um dos atores escreveu uma peça que nós montamos. O autor era o Flávio Migliaccio. Esse rapaz era o varredor do teatro, bilheteiro. Era muito engraçado, muito simpático. Às vezes deixava a bilheteria e subia para assistir o Laboratório de dramaturgia. Um dia apareceu com uma peça escrita. Acho que ele não tinha nem Ginásio. A peça era tão interessante que foi montada. O texto se chamava Pintado de Alegre. Flávio Migliaccio foi muito aproveitado como ator. Era um ator cômico maravilhoso. Foi mais tarde para a Televisão. Fez um sucesso enorme com o Paulo José, num seriado : Shazam – não me lembro o nome inteiro da série. Surgiu do nada.

O Arena se abria para qualquer pessoa...desde que a pessoa fosse excepcional e aceitasse suas idéias. Para permanecer no grupo tinha que ter algum nível de excepcionalidade. Do contrário não ficava mesmo. Éramos críticos demais e para passar pelo buraco da agulha, era uma loucura. Tanto que os antigos atores do tempo do José Renato, por mais que quisessem aderir ao novo grupo, não permaneciam. Não tinham um brilho próprio. Todos foram postos pra fora ou saíram por conta própria. A pressão era muito forte.

De toda fase realista, Black-tie foi a que teve mais sucesso e Revolução na América do Sul foi importante por introduzir o pensamento de Brecht na dramaturgia brasileira.

Quando montaram Arena conta Zumbi eu não estava mais lá. Já era free-lancer. Mas ainda éramos muito ligados. Montaram Zumbi às escondidas. Entravam no teatro às duas horas e saiam a meia-noite. Contrataram até uma cozinheira. Músicos, atores e diretor ficavam lá dentro inventando o Zumbi. Não participei da criação. Quando cheguei o espetáculo já estava  estruturado. Quando vi, achei muita graça. Parecia um bando de intelectuais, no tapete da casa do pai, tomando uísque e conversando sobre o povo. E a cenografia que fiz foi exatamente assim. Mexi um pouco na estrutura do teatro. Revesti o chão com um tapete caro, bem felpudo, um tapete de náilon, inclusive brilhante, uma coisa cafona, de turco rico. Parti do princípio de que nossos pais eram turcos ricos. Era um tapete vermelho de propósito, de brincadeira. A roupa era a roupa que a pequena burguesia usava para ir às Universidades : calça Lee e blusão...blusa de cor. Se não me engano eram sete atores que cantavam. Peguei as sete cores do arco-iris e cada um ficou com uma das cores. A calça era de brim...calça Lee crua. Não era branca. Ficou então essa idéia de que a peça se passava em uma sala de visita de uma família burguesa e rica, contando a história do povo. Todo mundo se via neles, ao invés de ver os negros. Os atores faziam todos os papéis : aristocratas portugueses, negros. Era impossível pensar em caracterizar cada personagem, porque eram milhares.

Arena conta Tiradentes foi muito mais difícil de fazer. Zumbi, realmente, era impossível caracterizar qualquer coisa. Tinham poucos elementos que entravam e saiam e com muitas funções. Poucos elementos de roupa, porque não eram necessários. A música e a poesia contavam exatamente tudo. Tinham caracter descritivo. Os próprios atores criavam, na coreografia, os movimentos. Moviam-se como se estivessem plantandoo, etc. A solução era fazer como se fosse um grupo de jograis, contando na sala de visita da casa. E foi bem recebido. Era muito bonito. Simples e lindo, enxuto e lindíssimo. Como a roupa era muito moderna e da época, todo mundo se sentia muito bem, vendo aquilo e nem percebia que estavam vendo eles mesmos.

Tiradentes era muito complicado, porque também contava uma história...compridíssima, mas tinham blocos de cenas que se passavam, mais ou menos, no mesmo local, então dava para se fazer um mínimo, inclusive, de caracterização espacial. No Zumbi, o corte era rápido. Ia para lá, vinha para cá, ia para lá. Então uma crítica que fiz ao Boal, quando ainda estavam trabalhando no roteiro de Tiradentes, era que ele fizesse blocos mais nítidos, se quisesse um apoio espacial. Então isso foi feito de maneira mais clara, dando tempo, inclusive, aos atores de pegarem os elementos para mudarem de personagem. Foi então que ele instituiu a teoria da máscara. Máscara não somente criada no corpo do intérprete, mas o corpo do ator apoiado em um objeto ou em um elemento da roupa. Vesti os personagens de intelectuais mineiros. Como fiz no Zumbi, porque quem fez a Inconfidência Mineira foram  poetas, escritores, a intelectualidade mineira, enfim. E como a roupa daquela época era uma coisa muito romântica : aquelas blusonas, camisas largas. Ficaram todos vestidos de românticos do século XIX e iam alternando o personagem, à medida que vestiam um elemento que os caracterizassem : governador, general, padre, namorada. Praticamente, os costumes contavam também a história, coisa que não acontecia no Zumbi. O espaço contava também a história. Na cena do Tribunal montou-se um Tribunal mesmo. Era muito bonito aquilo. Os elementos do Tribunal eram usados também pra outras coisas em outras cenas. A mesa, por exemplo, era dividida em dois pedaços e um dos pedaços transformava-se em balcão de bar de português, com uma arara e coisas engraçadas de bar de português. Os objetos de Arena conta Tiradentes eram pensados em termos de acompanhar a organização do espaço para cada cena. Tudo muito reduzido, muito simplificado, muito esquematizado, porque também era tudo sempre muito rápido. Mas, era muito mais complexo do que Arena conta Zumbi

Flávio Império

FLÁVIO IMPÉRIO

DEPOIMENTO DE FLÁVIO IMPÉRIO A MARGOT MILLERET
(1985)