DEPOIMENTO DE FLÁVIO IMPÉRIO
(1976)

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Depoimento de Flávio Império a Fernanda Perracini Millani e a Maria Thereza Vargas e Mariangela Alves Lima ECA USP, 1976 Centro Cultural São Paulo, 1983
Edição Maria Thereza Vargas
publicado em Flávio Império, Amélia Império Hamburger e Renina Katz (organizadoras), Editora da USP - EDUSP. São Paulo, 1999

© Flávio Império

Só vim a mexer com teatro muito depois das festas escolares, onde cantei, dancei, toquei piano e recitei. Já estava na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU - e com vinte anos de idade quando, em 1956, fui dirigir um teatrinho com crianças numa Comunidade Operária orientada pelo frei dominicano João Batista Pereira dos Santos, na Estrada do Vergueiro. Maria Thereza Vargas dirigia o grupo amador de lá, e eu, o teatro infantil de uma “escolinha de arte” pioneira, dirigida por Sabatina Gervásio e Cynira Stocco. Convidada a dirigir os Cadernos de Teatro, Maria Thereza vai para o Rio de Janeiro e integra, por algum tempo, o grupo Tablado. Em seu lugar, dirigi, fiz cenografia para o elenco amador adulto durante quatro anos consecutivos. Saía da FAU às seis horas da tarde e ia diretamente até o Vergueiro, onde trabalhava religiosamente até onze horas ou meia-noite. Aos sábados e domingos, em tempo integral.

Com o encerramento da experiência comunitária, fomos obrigados a recorrer aos salões de ginásios, clubes de futebol. Nossa última apresentação foi no Teatro de Arena de São paulo. Íamos até integrar o Arena como Departamento Amador, mas os desgastes de trabalho, a falta de uma sede, esvaíram as forças daqueles que trabalhavam demais para poder sobreviver, e o grupo continuou por algum tempo como um bom grupo de amigos e depois se dispersou.

Esse período foi um dos mais ricos da minha vida por permitir uma convivência bastante íntima e afetiva com setores da população que só vim a encontrar depois, nas filas de ônibus, nos bares, mas sem nenhuma possibilidade de um convívio mais profundo no plano humano.

Restrito à convivência da minha classe social, passei a integrar a equipe de trabalho do Teatro de Arena, desde os tempos de Eles não Usam Black-tie. Contestei durante o tempo todo o realismo meio fotográfico, que era a base do trabalho dos laboratórios de dramaturgia e interpretação.

Criado nos corredores e salões dos Museu de São Paulo, Cinemateca e Bienais, nunca me conformei com o tom naturalista que permeava as pesquisas de linguagem daquele tempo, em oposição ao que se chamava “formalismo do TBC”.

É preciso que explique um pouco esses grupos que, de certa forma, ajudaram na minha formação: O TBC tinha suas oficinas e técnicos, uma platéia refinada que dividia suas atenções com a Sociedade de Cultura Artística, com seus concertos de cultura erudita e bem vestida. O Teatro de Arena queria ser popular, classe média, estudantes e, se possível operário e camponês. Quando excursionou pelo Nordeste, fez muitos espetáculos em caminhões, em praças públicas e em conchas acústicas. O Augusto Boal procurava orientar todo o conteúdo à percepção mais simples e direta, sem nenhuma sofisticação de linguagem, com pouquíssimos recursos técnicos de espetáculo, além do teatro e do trabalho realista do ator, cuidando de evitar sobrecargas de psicologismos e concentrando a análise e a síntese no debate de temas sociais. Um certo regionalismo era inevitável, e fizemos muita coisa “nordestina”, “gaúcha”, “carioca”, “mineira” e “baiana”.

Num espaço mínimo de 4,5 x 5m, quatro pequenos corredores e 4,20m de altura, numa platéia com arquibancadas para 150 lugares, chegamos a mudar uma mentalidade sobre teatro e artes em geral e influímos bastante no cinema, na música popular, na dramaturgia, na maneira de se trabalhar um espetáculo e na formação de um tipo novo de ator, gente de equipe, sem grandes cartazes ou estrelas. A única grande vedete era o Boal. Ele é que recebia a imprensa, escrevia os programas e preparava os textos de divulgação, reportagem e anúncios. Num segundo plano apareciam alguns autores (em geral também atores): Gianfrancesco Guarnieri, Chico de Assis, Flávio Migliaccio, Roberto Freire etc. O grosso do trabalho era bastante anônimo, era o Arena.

Em geral, tínhamos dinheiro para cigarros e café. Sei de muita gente que vivia com iogurte diário. Em geral, jantávamos numa pensão na rua Maria Antônia, onde a gente cruzava com o pessoal das faculdades com o mesmo tipo de roupa, corte de cabelo, vocabulário e papo.

Trabalhávamos diariamente cerca de dez horas, fora as apresentações à noite. Desde as duas horas da tarde nos ocupávamos em preparar textos, ensaiar, reformar camarins, bilheteria, sala de trabalho, rouparia, sala de exposições, produção, cenografia, contabilidade, livro-caixa, empréstimos em bancos etc. Éramos fregueses assíduos dos depósitos de móveis e de roupas usadas do bairro da Luz. Conhecia pessoalmente todos os judeus que eram donos das lojas abarrotadas de roupas, sapatos, móveis da rua General Couto de Magalhães.

Nossos maquinistas éramos nós mesmos e mais o Antônio Ronco, porteiro do teatro até bem pouco tempo, que revezava entre a zeladoria do prédio vizinho e todas as funções de ajudante no tempo de montagem das peças. Estreávamos com um orçamento mínimo e incomparavelmente menor do que qualquer outra montagem da época.

Do ponto de vista da produção, as condições paupérrimas do teatrinho do Vergueiro se repetiam no Arena, pois, se as funções de “espetáculo”: cenografia, roupas, iluminação, desenho de produção, comunicação visual eram entregues pela primeira vez a mãos especiais, deixando de lado a improvisação, não se reconhecia, porém, a importância de uma infra-estrutura específica. Trabalhávamos com “cuspe” e transformávamos, num golpe de mágica, aquela caixinha em mil lugares e transportávamos a platéia por todas as situações dramáticas a que nossa imaginação nos levava. O mundo dividido num esquema dualista e quase maniqueísta: o bem e o mal metafísicos eram transpostos, sem grande cerimônia, para conflitos humanos de origem social. A base dos seminários de dramaturgia e interpretação trazidos pelo Boal do Actors‘ Studio, onde acabara de trabalhar mediante uma bolsa de estudos, era a busca de uma síntese de alguns elementos stanislavskianos (e mais tarde brechtianos) de interpretação do fenômeno teatral como um todo. De início, Stanislavski servia de fonte para incríveis laboratórios, onde os atores se entregavam de corpo e alma em busca do gesto e da palavra carregada de emoção específica, emergente de cada situação dramática.

Num espaço tão exíguo, as técnicas vocais, corporais etc., podiam ficar reduzidas a um plano quase mínimo, onde um simples sussurro e o movimento de um dedo eram imediatamente captados pela platéia. Por outro lado, essa extrema proximidade não permitia o menor deslize, a menor desconcentração. Qualquer bobeada era igualmente “captada” pelos espectadores. Por parte da platéia também, qualquer reação de empatia ou de crítica ou de entusiasmo era imediatamente sentida pelos atores. Essa grande intimidade, envolvendo os atores por todos os lados, exigia uma grande descontração e naturalidade a cada instante do espetáculo.

O palco italiano conta com as coxias e os planos posteriores de apoio, onde grande parte da atuação encontra ressonância. Em arena, o grande apoio é o apoio natural, o chão, e Augusto Boal explorava o chão de todas as maneiras que conseguíamos inventar. Trabalhou quase sempre com pessoal iniciante que, em suas mãos, encontrava sempre algum eixo interior onde se apoiar para atuar. Além do plano físico do chão e seu eixo interior, a atuação em arena se valia dos princípios básicos da construção do personagem e das situações:

  • concentração no seu próprio eixo emocional;

            - interação a mais profunda possível, em cada instante do drama, com os outros personagens;

            - perfeita compreensão da estruturação do personagem e da cena;

            - estabelecimento de uma coerência arquitetural a cada cena, onde móveis, pequenos praticáveis, objetos de cena, roupa e objetos pessoais entravam em interação dramática e em vibração emocional. Cada gesto era construído conscientemente com os corpos e objetos em geral. Ficava-se dias em cima de uma situação dramática até extrair, dos poucos elementos em jogo, o máximo de síntese e linguagem. O outro tempo era usado na limpeza de cada cena em função da estruturação do todo do espetáculo. Discutiam-se todas as descobertas e assimilavam-se as diversas contribuições e sugestões. O trabalho contínuo em equipe permitia um grande feedback para o trabalho individual.

Aos poucos, o desgaste da linguagem dramática e as abertura que o espetáculo brechtiano permitem foram incorporando e pedindo uma atuação diferenciada do grupo. Surgiram as primeiras incursões do drama com música e canto e, progressivamente, o som de um conjunto de instrumentos, a música composta especialmente para o espetáculo, feita durante os ensaios, vem como o movimento dos atores sendo levados para além do gesto realista do cotidiano. O canto ficou incorporado à fala, e passava-se de um para o outro com uma liberdade cada vez maior.

Essa alteração de linguagem ocorre paralelamente à ascensão da música popular brasileira, impregnada de um impulso crítico e exaltativo imediatamente posterior à bossa nova. Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Caetano, Gil, Gal, chegando do Rio e da Bahia, faziam espetáculos paralelos e dirigidos também pelo Boal e por mim. Os festivais da tevê Record estouravam em audiência e, nas segundas-feiras, tínhamos espetáculos de bossa nova no Arena. Os filmes Rio 40 Graus, O Grande Momento, Opinião, Deus e o Diabo na Terra do Sil, Zumbi, palestras, seminários do Boal em Salvador, o Teatro Princesa Isabel, o Teatro de Equipe de Porto Alegre, formavam um todo bastante significativo, entrelaçavam-se e constituíam-se quase num movimento sem organização mas orgânico, sem centralização mas concentrado na problemática social, tão na ordem do dia naquele tempo. Dizia-se que o jovem dessa época tinha um tipo de imaginação sociológica, e o movimento teatral mais forte, o teatro, a música, o cinema e até a pintura refletiam esse fato. Muito da sensibilidade do homem de hoje entre trinta e quarenta anos foi formada nesse ambiente cultural.

Nessa época, o Teatro Brasileiro de Comédia agonizava em montagens extemporâneas, tentando lançar novas atrizes e atores como estrelas, uma vez que seus elencos mais fortes já tinham se fragmentado e preservavam sua escola "tebeciana" ou assimilavam temporariamente a nova linguagem que surgia. Espetáculos como Gimba, A Semente, Liberdade, O Pagador de Promessas se mesclavam a Leonor de Mendonça, Depois da Queda e um número enorme de filhos diretos dos espetáculos clássicos, à maneira do TBC.

Antígone, de Sófocles, e Antígone de Anouilh, levados conjuntamente, foi o primeiro espetáculo de teatro que vi aos catorze anos aproximadamente. Foi montado pelo TBC, com Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Paulo Autran e um número enorme de gente conhecida até hoje. Saí do teatro impressionado com o que vi: atores, luzes, espetáculos, cenários, máscaras etc. Tudo tinha uma estranha coerência de linguagem que só mais tarde pude analisar e compreender. Assim como eu, a província era tomada de assalto por uma realização extremamente trabalhada e cuidada, estudada e realizada em todos os detalhes, em que todos os atuantes estavam igualmente preparados e tudo era parte de uma grande orquestração.

Eu me lembro de quanto me impressionou um enorme mural em relevo, à direita da cena, que de repente começou a se movimentar e a falar em coro. De início, gestos congelados, maquiagem, roupas e máscaras constituíram um mural rígido e petrificado. Lentamente, aquele mural ganhava movimento e som e se percebia ser constituído de gente. No programa, o perfil de Cacilda Becker deixava nítida uma linha de nariz-testa gregos preenchidos, que fora o vão das sobrancelhas com massa de maquiagem. O cuidado com a reconstituição dos figurinos “da época” e de um certo “tom” de “tragédia grega” grave, profundo, com tiradas estatuárias, era o tom geral. A espetaculosidade dramática, acentuada pela música “de fundo” e pela iluminação, exteriorizava os sentimentos em esquemas bastante esteriotipados e constituídos a partir dos efeitos “plásticos” quase independentes do ator que tivesse que executá-los.

Os “sentimentos” exacerbados de sofrimento, dor, alegria, autoridade, frivolidade, passavam, de Sófocles a Feydeau, como “estilos”, maneiras de se interpretar “drama:”, “comédia”, “farsa”, ou este ou aquele autor que, já de partida, tinha um repertório de signos teatrais pré-estabelecidos. Elementos estilísticos, signos formais, quase fórmulas cristalizadas nos palcos europeus para cada espetáculo.

No Brasil, atores, cenógrafos, técnicos, “aprendiam como fazer teatro”. Como os diretores eram todos europeus, essa “maneira” de pensar o espetáculo acabou como uma “escola”, num treino de estilos. Evidentemente nisso há exageros, pois vários atores “formados” pelo TBC, como a própria Cacilda (estrela maior do star system criado pela empresa), extrapolavam esses limites primários para se colocarem muito além de todas as atrizes de sua época com uma sutileza psicológica e uma intuição seletiva de significados extremamente refinados. Superando dificuldade físicas de voz e muitas vezes aquém do alcance intelectual do que fazia, tinha uma intuição e um poder de concentração e magnetização da platéia praticamente sem paralelo até hoje. Isso não implica que, mesmo assim, ela também não representasse uma maneira de ver o teatro sob uma ótica bastante “tebeciana”. Me lembro de vê-la saindo no intervalo de Zumbi dizendo bem alto que aquilo não era teatro. Dos autores brasileiros, preferia os dramas de classe média de Abílio Pereira de Almeida. Muita coisa sobre ela seria interessante ressaltar, pois um traço vertical na sua personalidade encontraria muitas raízes para aquele ar de “primeira dama” do teatro brasileiro, apavorada diante da hipótese de uma atriz poder ser confundida com prostituta.

As atrizes do Arena e, principalmente depois, as do Oficina procuravam um despudor frente a suas origens pudicas de classe média que Cacilda, Tônia Carrero, Cleyde Yáconis, Maria Della Costa etc., nunca conseguiram abandonar em cena nem por alguns momentos. São sempre “muito dignas”, como qualquer burguesona da platéia... Suas prostitutas têm, no máximo, aquela grandeza fidalga das nossas Damas das Camélias de ópera. Mesmo quando fizemos Mandrágora ou O Melhor Juiz, o Rei, no Arena, ou qualquer outro autor clássico, o enfoque visual, gestual e espacial era livre para invenção, usando-se a “moda” da época histórica mais como reveladora dos esquemas sociais e psicológicos do que como evocação histórica.

Quanto ao Teatro Oficina, acho que nasceu de um impulso do Arena. O Augusto Boal, durante algum tempo, foi o superego do Zé Celso (diretor do Oficina). A racionalidade didática do Boal logo se evidenciou como uma prisão sistemática às energias contraditórias e anárquicas do Zé. Zé Celso e Boal têm, no entanto, algumas características de personalidade em comum. São extremamente inteligentes e capazes de animar e dinamizar o trabalho de um grupo grande de pessoas, contribuindo o tempo todo com uma avalanche de idéias e propostas para o grupo que lideram. Por essa qualidade, são capazes de invadir sem cerimônias cada pessoa do grupo e, muitas vezes, se apossar do núcleo emocional de cada um. Daí por diante, ou existe um equilíbrio e uma distância garantindo essas individualidades, ou muito facilmente eles passam a controlar, com o consenso do grupo, cada individualidade a favor de alguma coisa fora de você: um projeto, uma realização e principalmente o jogo, muitas vezes bastante contraditório, das suas próprias personalidades e emoções.

Apesar de gostar muito de Zé Celso tenho certa dificuldade de trabalhar com ele. Para Zé celso, tudo é muito dramático, muito dostoievskiano. E para mim as coisas são mais simples. Me envolvo menos no drama. Zé Celso se projeta em tudo que faz e sofre muito. Eu prefiro trabalhar sem sofrer. Sofrer só com as dificuldades do trabalho. Não o sofrimento do envolvimento. A gente tem um pouco do que está escrito nas peças, mas não tudo. E a gente pode preservar isso que sobra. Porque, se o teatro é drama e o drama permanece no conflito, viver o conflito inteiramente e a vida inteira é viver a vida centrada no conflito. Então foi muito necessário que eu separasse o trabalho da vida. De um lado, o teatro, do outro lado, a vida. Consegui isso só depois dos quarenta anos. É preciso estabelecer uma certa clareza porque, no teatro, o conflito é ficção e, na vida real, é a realidade. Então não adianta querer dar o peso da ficção que você dá com o símbolo para aquilo que você está vivendo. O que você está vivendo é muito mais simples. Menos complicado. Se você confunde e começa a levar em conta toda a complexidade da relação humana, você não vai conseguir se relacionar com ninguém. É impossível cada um ser conhecido, desvendado, penetrado. É sempre um outro e, sendo um outro, é sempre completamente desconhecido. Julgar pelas aparências é querer ignorar todo o desconhecido que a própria pessoa tem o direito de ter.

Não cabe a ninguém revelar seu inconsciente ao outro. Que ele próprio descubra. Então para mim é muito difícil conviver, porque é muito difícil eu não estar revelando o tempo inteiro, mesmo sem querer, mesmo de brincadeira.

No horóscopo, sou porco. Inteligência extremamente brilhante e irônica. Sou meu maior inimigo. Tenho que tomar cuidado para não me voltar contra mim mesmo. Eu praticamente passo um lápis vermelho em tudo e risco em cruz. Como uma professora faz com seu aluno desobediente.

Eu tenho uma espécie de luzinha que fala e que me dá sinais quando devo me afastar de um trabalho. Os motivos sempre variam, e até hoje eu me surpreendo de me meter em alguns projetos dos quais fica difícil eu me afastar. No geral surge algum tipo de incompatibilidade cujas razões nem sempre ficam claras. Talvez quando o estímulo básico da criação se concentre demais nas mãos dos diretores, ela tem a tendência de falar e acender. Quando existe uma equivalência de sintonia com relação à obra que se vai fazer ou uma responsabilidade criativa livre, ela se cala e não acende. Nos casos mais escabrosos, costumo me valer de cartas-bilhete bem sucintas que avisam que me afastei. Não gosto de dar explicações nem de pedir muitas satisfações. Em trabalho de equipe, ou o entrosamento é espontâneo e natural ou é inútil forçar a barra.

O Oficina tinha que pegar fogo. É necessário, acho, que todos os teatros se incendeiem de tempos em tempos. Um espaço arquitetônico que se anima em espaço teatral com a violência que o Oficina se animou, só queimando para apagar todas as impressões dramáticas e trágicas que se acumulam, reverberam e se registram em seu corpo magnético. Aí, destruído, se reconstrói outro espaço como um corpo novo e vigoroso para transformações. Uma coisa assim: depois de muito tempo de tensão dramática levada à exasperação, ao desespero, um corpo registra tantas impressões e fica tão impregnado de significados que ele, em si, começa a ter vida própria sobre seus usuários e a determinar ou a influir sobre a conduta, seu inconsciente, sua fantasia, sua capacidade de imaginar.

Um dia, fui chamado às pressas à rua Jaceguai e encontrei o Zé Celso perplexo e extremamente comovido no meio das cinzas e dos restos fumegantes das arquibancadas, qual se houvesse havido uma morte, que, essa sim, é irreparável. Eu ria de ver o antigo espaço descoberto e de repente o dentro virado fora e o céu sobre as nossas cabeças ensolarando os escombros de pedaços de um mundo que só tinha conhecido a luz elétrica dos refletores. Um banho de vida sobre um espaço apagado e neutralizado por um espetáculo natural. Graças a Deus aquela caminha que sempre acabava por entrar em cena, maquiada de mil maneiras, não existia mais. Tudo tinha virado carvão.

Considerado muito “psicanalisado” pelas galhofas do Oficina e indisciplinado e contraditório pelos remanescentes do Arena, brinquei com todos os jogos e me encontrei realmente quando fazia, outra vez sozinho, os meus espetáculos: Os Fuzis da Senhora Carrar - que chamamos de Os Fuzis de Dona Tereza - no Teatro dos Universitários de São Paulo (TUSP) e Labirinto: Balanço da Vida, com Walmor Chagas dizendo textos e poemas.

Com o Living Theatre, Fauzi Arap e Maria Bethânia, eu mergulhei fundo numa metafísica individual que resultou em muitas pinturas e poucos espetáculos teatrais. Meti a cara em vários terreiros, me coloquei muito tempo de pai-de-santo, a ioga procurando acompanhar os meus mortos sumidos e consumidos com as guerras do mundo. Acho que pus os pés no fundo, onde está São Pedro, mas morri de medo embora ache tudo divino e maravilhoso. Encontrei meu transe transido de pavor. E vi, juro que vi, embora tenha esquecido, coisas tão estranhas que, ao voltar para o lado de cá, estranhei muito o meu mundo, que nunca tinha encarado bem de frente. Acho que fiquei louco, ou loucos são todos aqueles que se dizem normais. Durante algum tempo, fiquei recolhido, pintando o que sentia e aos poucos fui sendo trazido de volta ao convívio dos mortais, iguais a mim, bem comportadamente representando seus pequenos papéis no teatro do mundo. Procuro me orientar o melhor possível entre os meus pares, fingindo não ver o óobvio e sentindo cada vez mais próximo o limite provável da insensatez.

Aprendi com Vivian Mehr, Walmor Chagas, Cacilda Becker, André Gouveia - gente que pensa a morte de um outro jeito -, não sei dizer bem como. Não diria que otimista, porque isso seria uma espécie de alienação última. Acho que a morte é assim como o pano de boca de um espetáculo para o qual a gente tem ingresso, tem poltrona garantida e que depende de nós transformarmos esse espetáculo numa noite de gala ou num enterro. Somos nós que decidimos. Não se deve cultivar a idéia de quem fica, que é a idéia do enterro. Como estamos usando nosso próprio bilhete de embarque, que acendam as luzes! que seja uma cena muito interessante e que seja a própria energia ou a luz divina, ou a cor do fogo, mas de forma que não nos sintamos mal porque morremos, e que se tenha uma boa sensação por ter vivido. Só assim posso encarar as cenas de morte. A morte não precisa ser despedida, mas, pelo contrário, gesto de vida, natural como um cumprimento: “bom dia, oi tudo bem?”, um acidente tipo almoço, viagem, sonho. Que seja o juízo final meio parecido com algumas passagens de sua vida em que você tem uma certa autocrítica e passa a conhecer seus defeitos.

Um dia, chorei por quatro horas seguidas. Estava pensando nos momentos em que fui egoísta. Não parava de soluçar porque era um desfile como um teatro medieval, mas a cena era sempre a mesma, ainda que o cenário tivesse mudado. Eram todos os meus egoísmos desfilando na minha própria consciência. Tenho a impressão de que estava fazendo o cenário de A Falecida. Era um momento em que eu precisava, para realizar o meu trabalho, de um choro desses, do contrário não conseguiria fazer nada. “Ah!...” e foi. Parecia que, de dentro de mim, tinha saído um grande morcego e voado pela janela da sala. Era uma coisa negra que, voando, tinha uma forma morcegal que, na verdade, era um sofrimento de angústia pela minha grande infidelidade conjugal. Fui sempre infiel e sofri a angústia do meu egoísmo. Consegui chegar à imagem do cartaz de A Falecida passando por esse processo. Não queria fazer a pútrida figura que sabia inclusive sentir amor do jeito dela - do jeito que conseguiu, meio mariquinhas, subúrbio carioca. Era uma mulher muito afetiva, como qualquer outra mulher que consegue gostar. E quem não consegue está perdido.

Tenho consciência de não ter inovado nada no plano internacional. Fui um cenógrafo atento ao que ocorria aqui e fora. Nem melhor, nem pior do que muitos. Atualizei vários conceitos aqui na província. Consegui, com produções paupérrimas, um nível de realização extremamente sofisticado.

Não me considero “autor” de nenhum método ou sistema estruturado da linguagem nova. Para falar a verdade, eu servi o meu tempo com o meu mais empenhado entusiasmo. Acho que por isso não me ponho a ditar regras. Fiz tudo o que já tinha e existia com a inocência de quem inventava de novo. Fui um alegre Robinson Crusoé que, em terra fértil e com um canivete, reconstruiu um arremedo de civilização. Ando hoje à procura do Sexta-feira, não para ensinar nada a ele, mas para aprender.

MORTE E VIDA SEVERINA:

Costumo falar dos meus primeiros trabalhos profissionais a partir de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, montada pelo Teatro Experimental Cacilda Becker. Como o nome indica, o teatro experimental era uma variante do Teatro Cacilda Becker, uma espécie de teatro das segundas-feiras, pretendendo-se alternativo.

Morte e Vida foi feito tipo realismo de minha cabeça misturado com a cabeça de Bertold Brecht. Era a vontade de fazer um teatro cuja estética não fosse fechada. Um teatro onde houvesse projeção de slides, imagens que elucidassem os fatos, puxando-os para nossa realidade cotidiana. Um documentário, enfim. Uma coisa sobre o Nordeste feita com afetividade racional e lógica da poesia de João Cabral, interpretada pela cabeça poética, racional e lógica do paulista. Logo, acho que tinha mais coisas do que o universo do autor. O cara de teatro daquele tempo, 1960, achava que a cabeça de quem faz tinha direito de existência. Então se mostrava, adorava um certo exibicionismo, semelhante ao professor universitário que gosta de mostrar tudo o que sabe. A vaidade do saber, toda consumida nos anos 60, graças a Deus.

O espetáculo, portanto, tinha muito de documentário informativo, como projeções de slides contendo dados sobre a imigração, sobre a chegada dos nordestinos à Estação do Norte, etc. O Nordeste para a cabeça do paulista era uma tragédia nacional, uma chaga. O resto do corpo nos parecia sadio. Hoje, que somos a maior cidade nordestina, sabemos que o país todo é uma chaga, mas nem por isso existe morte.

A PATÉTICA:

Juntei [na exposição que vou fazer no Centro Cultural São Paulo, Morte e Vida Severina com Patética]. Existe uma lógica nessa junção, mas não dá pra explicar exatamente qual é. A Patética não passa de uma teima do diretor Celso Nunes, querendo que eu voltasse a fazer teatro, numa época em que eu estava voltado para a pintura. Tanto assim que o projeto saiu numa tela, numa tela pintada num ateliê de pintura. Eu não estava mais com vontade de fazer teatro, mas ele me convenceu. O Celso é uma das pessoas mais sistemáticas com quem trabalhei. Tem uma energia positiva que coloca em tudo que faz. E como tem fé, ele faz. Porque se tudo dependesse de mim...seria difícil porque tenho dúvidas, acho sempre que não vai dar. E então fico sempre perto de quem acha que dá e faz. Fico escandalizado com a capacidade mágica de certas pessoas, que transformam a impossibilidade em nova realidade. Por causa disso, sou carona de teatro desde que nasci. A estética da Patética nasceu assim: “Celso, por que você faz tudo em preto e branco? Que mania! Você não sabe que existe o tecnicolor?” Resposta: “Eu faço tudo em preto e branco, Flávio Império?” (porque ele sempre me chama de Flávio Império, como se meu nome fosse nome de rua). “Noto uma coisa que me desagrada em seus espetáculos: é que tudo é em preto e branco e, quando entra cor, é com sentido puramente simbólico, nunca sensorial, sensual.” E a cor é a linguagem da sensação mais viva e a forma da razão. Então você constrói, delineia o seu espetáculo e quer tanta clareza nele que passa a eliminar a cor porque ela confunde a mente, trazendo também um outro nível de emoção, que são as sensações mais grosseiras, tipo prazer, tipo alegria, tipo tristeza, ensimesmadas, quer dizer, saídas do baú de cada um. Tudo vai depender dos baús individuais e, conforme você quer determinar a emoção pela leitura do que você faz, você delineia a forma. Nesse caso, o branco e preto é útil. Eu prefiro a difusão das sensações no teatro. Acho o branco e preto chato. Parece um livro que eu tenho que fazer um esforço para detectar exatamente a idéia que está contida em qualquer um dos momentos. Saco de coisa tão determinada, tão autoritária como linguagem para minha cabeça! Então eu prefiro o arco-íris, que não é absolutamente nada. É a imagem virtual da decomposição da luz branca. Só porque choveu e fez sol ao mesmo tempo. Então para mim aquela coisa de “sol e chuva casamento de viúva...chuva e sol casamento de espanhol” sempre foi teatro. Como se o cenário de Deus tivesse uma pecinha completamente sem sentido, mas tão colorida e surpreendente na magia do aparecer e existir que eu fico achando a cor teatral, pela própria natureza do fenômeno cenográfico que Deus inventou e com o qual aprendi o que todo mundo sabe que existe na gota, no brilho do cristal. numas irrealidades e que o arco-íris nunca aparece de verdade, a não ser quando pintado com tinta. Então por que não sugerir o arco-íris, já que não é materializado, utilizando a cor fragmentada mesmo, distribuída onde possa aparecer melhor. E, se for preciso delinear com mais clareza a idéia, que se use então o preto e branco! E falei então para o Celso: “Nosso espetáculo será assim: branco e preto é a sua cabeça, que eu respeito; e a minha, que eu não respeito nem um pouco, ficará com o outro lado”. Não acredito que o mundo seja preto e branco só. Acho que, se for posto assim, poderá ficar com um tipo e clareza, mas ele estará nos entretons das cores. Não estará nos valores da sombra absoluta, da luz absoluta. O olho humano está mais acostumado às nuanças do que aos contrastes. É um direito do público exigir que aconteça com ele o mesmo fenômeno que completa as emoções, as sensações que tem. “Vou ficar com a parte de circo mostrada na peça e você fica com a parte da peça realista. Não vou nem me preocupar com os personagens realistas. Conheço todos. Não vou perguntar pra você como é que fulano de tal se veste. Vou numa loja de roupa usada e vou juntando num esquema de cor que faça contraste com o circo. Faço todos os objetos e você fica com o segundo andar, que é branco e preto.”

Ficamos plenamente satisfeitos: eu com o meu circo, e ele com o teatro dramático. Ele compreendeu com muita facilidade o meu circo, mas eu com muita dificuldade compreendi (e compreendo) o realismo dele. Assisti a tudo aquilo com muita dificuldade, principalmente a cena de tortura, que eu não quis nem ler. Fui só assistir. Não gosto de usar o teatro pra se fazer esse tipo de coisa. São coisas feitas em outros lugares, e eu acho que não vale a pena evocar. Já é demais que existam. As outras coisas são evocativas: é a natureza, é a vida, é a cor, é a capacidade de ver, de distinguir o brilho do opaco, a capacidade de distinguir o agressivo do suave. Você então veste o personagem assim: uns de agressivos, outros, suaves. Há uma forma para isso. O agressivo quer tudo meio anguloso, duro, reto. Tudo que é suave é ondulante e, entre umas e outras gestalts, você faz brincar os babados, os recheios dos personagens, sem precisar transformar numa alegoria, mas em matéria brita que a emoção faz chegar diretamente porque as percepções da época têm mais ou menos condicionamentos semelhantes. Existe, em todas as épocas, uma espécie determinada de sonho para o que estão dormindo e de realidade para quando acordam. Quando você consegue, ainda que pela mascarada, aproximar o momento do repouso do momento da vida, tanto melhor. Então, que se durma acordado no teatro! Acho isso melhor do que chamar atenção para a vida. Para isso, existem os debates na televisão, esclarecimento, grupos que pensam... Ir ao teatro para ouvir um debate, um esclarecimento... eu não tenho mais saco! Nunca gostei desse mecanismo doutrinário, mesmo quando todos acreditavam nele e a aceitação disso era unânime à minha volta. Saí do Arena por desfastio. E, quando me chamaram para fazer Arena conta Zumbi, eu não estava mais lá. Quando cheguei, já estava tudo praticamente pronto. Pude perceber um entusiasmo, um amor. Passaram a vida inteira cozinhando dentro do teatro, comendo dentro do teatro, fazendo laboratório dentro do teatro, construindo a peça, fazendo a música. E estreou com uma força que eu ajudei a dar, dando um toque e retoque da mesma forma que fiz em Doces Bárbaros, muito tempo depois. Também estava pronto. Cheguei e dei um toque. E são coisas muito simples. No fundo, é decidir com clareza. É como uma gestalt que praticamente já existe. Pode-se investir no elemento abstrato que é a cor, a forma que está no movimento que cada um faz junto com a ação e o embarque das emoções em cima, explode para baixo, na fossa, morte e sonhos, em todas essas coisas meio temperadas. Então as pessoas dizem que tudo que faço é extremamente elegante. Agradeço porque em geral, quando me olho, me acho extremamente mal vestido. Não sei me pôr elegante. Então fico em dúvida se o que faço é realmente elegante. Não faço a menor idéia, porque acho tudo tão parecido com o jeito que me visto. E nunca ninguém disse que sou elegante, pelo contrário. Mas o que faço é elegante. Como eu me faço de mim, me visto de mim... Por exemplo, fui eu que escolhi esta camisa, portanto, me faço também cenograficamente, como faço meu espetáculo e meu personagem. Não foi - digamos - por uma exorbitância, no sentido de tornar de alguma forma elegante, que a coisa ficava elegante. Ficava elegante, talvez, por um certo jeito de juntar o nada com o pouco. Porque sempre foi pouco o que se dispôs no teatro brasileiro para se fazer qualquer coisa e era do pouco que se tirava, pelo menos, o necessário. Para isso é o suficiente, e talvez tenha sido isso que tenha virado a imagem de uma coisa elegante. Não faço a menor idéia. Como a resposta que recebo pela crítica é: “Oh! não sei... resolveu extremamente bem e elegantemente o...”. Às vezes empregam um parágrafo maior: “Note-se muito particularmente o trabalho excelente das soluções encontradas para etc., etc, e tal”. Ponto final. Sempre fui nota ao pé da crítica. Eu não reclamo. Acho ótimo. Não gosto de crítica muito grande. Se a pessoa gosta, diga logo porque gostou. Entendo perfeitamente, falando assim, do que a pessoa gostou. Isso porque conheço a cabeça dos críticos em geral. Não conheço os críticos, mas sei o que pensam.

Gostaria de chamar Os Fuzis de Tereza Carrar, o show da Bethânia, Os Doces Bárbaros, o show da Célia, tudo isso de Bloco dos Anos 60. E na exposição do Centro Cultural gostaria que escrevessem no chão “Bloco dos Anos 60”. Seria uma grande área de carnaval. Gostaria que o material referente aos Fuzis fosse uma espécie de carro alegórico, ou seja, um carro que puxou para fora o máximo do meu conhecimento, como se eu fosse uma espécie de Joãozinho Trinta de um carnaval cujo cordão havia decidido que o tema fosse aquele, e eu então seria um técnico que organizaria a linguagem, com a eficiência exigida toda vez que um técnico se dispõe a trabalhar. Tenho a impressão de que sou o herdeiro daquele Gustave Eiffel que construiu a Torre Eiffel para a Exposição de Paris de 1889. Sabia que era uma coisa provisória, para não durar muito. Está lá até hoje. Ele (Eiffel) foi tão exagerado que não quis fazer apenas um monumento passageiro, e os franceses acreditaram que aquilo era a França. A culpa não é do engenheiro, é dos franceses. A maquete de A Falecida seria uma outra alegoria, uma alegoria que puxa meus trabalhos para uma espécie de re-al-idade tratada de outra maneira. Um carro alegórico aqui, outro ali; uma espécie de alegoria branca, uma espécie de alegoria negra para a mesma Sociedade Carnavalesca.

CHIQUINHA GONZAGA:

Num certo sentido Chiquinha Gonzaga, montada pelo Teatro popular do Sesi, é fruto de uma quase síntese da linguagem num plano abstrato. Existe morte também em Chiquinha Gonzaga, mas não é dramática. Só a Chiquinha chora, a família não. No alto, tem a mãe que a recebe, que é a mulher, e o céu e as estrelas que se acendem num fundo inteiro, como se, redimidas pela morte, todas as gerações tivessem seu lado construtivo e destrutivo.

Chiquinha abençoou a morte do pai porque sabia do que se tratava, os preconceitos que o pai tinha em relação a ela e independentemente da rejeição final (o pai não a quis receber), ela o incorpora no lado da morte, no sentido do alívio, inclusive dos pesos da terra e, numa espécie de juízo final, ela o absolve, apesar de não ter poder nenhum sobre a alma do pai. Só tem poderes sobre a sua própria alma e, se fosse condenada, seria condenada, seria condenada pelo resto da vida. Então ela absolve a si mesma, no pai, porque, na verdade, nunca se sentiu culpada. Batalhadora, nunca arredou o pé do que pensava das coisas. Tinha certeza de que os outros deveriam fazer o mesmo e por isso entendeu perfeitamente o processo da família e, como não amargou na rua do desespero, realizou uma carreira que foi reconhecida, como poetisa, musicista etc. Sabia que a própria sociedade que a condenara agora a sustentava e tinha o maior prazer em saber que ela existia. Era aclamada na rua... digamos assim. A última pergunta que fazem a ela é: “Onde é que a senhora vai?. Está com 83 anos. E ela responde: “Uai, estou trabalhando...”. Nunca parou de trabalhar. Achei que isso não era o fim da peça que fizesse com que as pessoas suspirassem de saudades dela. Então eu fiz aparecer uma última alegoria. Inventei um carnaval e coloquei uma ponte voltada para a platéia como se fosse trampolim, e o figurino que ela veste vai até ao chão como se fosse ela própria uma espécie de destaque de escola de samba da história que acabou de contar, e o cordão que sai de baixo da saia e as bases que o destaque segura são claves de sol. Se forma nenhuma queria perder a oportunidade de chamar atenção para a linguagem sentimental da música que ela compôs. Acende-se um céu de estrelas. É madrugada, e o desfile começa a aparecer: uma única figura enorme, cor de madrugada, vinda da noite, aquela passagem do preto para violeta, mas claro, tipo cinza. É a roupa final do espetáculo. É como um bolo de noiva enorme que avança para a platéia. Da saia feita em pedaços, saem as figuras que contaram a história. Têm algum elemento prateado (igual à cor da roupa de Chiquinha). São elas o bloco de sua própria escola de samba. Ela fica sozinha em cima do carrinho. Quis mais uma espécie de grand final, de pequena revista de paróquisa, jogando com a metáfora do teatro e a metáfora da revista como linguagem. Tudo sem querer fazer um grand final de verdade. Inventamos uma coreografia construída também em cima de uma música conhecida. Atrás dela então se acende uma grande luz, enquanto ela vem avançando. E na lua está escrito: fim. Pedi para ser tocada a Lua Branca no meio do espetáculo, e é essa a lua que aparece nesse final. Pedi para que fosse tocada essa música porque achei que faltava no texto uma valorização do homem amoroso. Só apareça a mulher como capaz de amar, de ser mãe, protetora, batalhadora, e o homem aparecia só como uma espécie de zangão que trepa e morre. Acho isso muito pobre. Acho que o homem também tem lá a sua riqueza! Então eu quis mostrar o sofrimento dele fazendo-o cantar Lua Branca, na hora em que ela o abandona. Nesse momento, sobe um carrinho, pára e aparece a lua branca projetada na tela. Essa música composta por ela dá uma idéia do lado sentimental de Chiquinha Gonzaga. Lado sentimental de ter ela seguido em frente, segurando a própria afetividade e que foi transformado em música. Ela não deixa de ser uma poetisa menor dos sentimentos sentimentais dela. Esse lado está um pouco desaparecido na peça. O que se mostra é o sentimento heróico, radical dela perante a vida e a época. Aparece como uma grande turrona, com inimigos e amigos. Todos os inimigos desaparecem. Ela está morta. E então os inimigos, que eram os de cor preta, passam a ter cor prateada. Relembrar Chiquinha Gonzaga não é relembrar glória nenhuma. Nunca foi reconhecida como uma grande compositora. É uma musicista menor, o que ela fazia era uma coisa “chopiana”, muito fraca para o gosto da crítica. Mas o público da “novela das seis” vai adorar!

ANDORRA:

Andorra, montada no Teatro oficina, em 1964, teve uma estética especial. Veio depois de Pequenos Burgueses, uma montagem perfeita em todos os sentidos. Como realizar uma nova montagem no mesmo nível? Mas Zé Celso insistiu e fizemos outra, com a mesma afinação, mas com outra estética, completamente diferente. Eis algumas anotações que fiz para o trabalho:

Espaço: arena do Oficina,

Utilização diferente do espaço da arena:

  1. tratamento do piso do palco, material poroso cinza-chumbo.
  2. tratamento de toda extensão das duas paredes laterais (incluindo a área das platéias) com trainéis brancos (aniagem grosseira trabalhada com cal branca).
  3. carrinhos que corriam pelos corredores laterais e entravam nas laterais da arena alterando simultaneamente os lugares da ação sem interrupção da mesma. (fig.47)
  4. sobrecarga de caracterização dos personagens ampliando sua estrutura espacial (barrigas, coturnos) sem romper o caráter realista do drama. (Fig. 48)
  5. estudo isolado de cada cena para extrair do drama rodo o seu conteúdo social e psicológico ao nível quase do teatro épico sem romper a coerência interna da tessitura dramática.
  6. suspensas no teto do teatro, pintadas de preto, ficavam formas abstratas com imagens e textos iluminados por dentro em determinados momentos de ação, contendo uma carga semântica de comentários, embora sempre utilizadas como elemento “realista” na cena: cartazes, anúncios, vitrais de igrejas etc. A limpeza do tratamento espacial era extraída do conteúdo básico do texto, e praticamente existiam duas não-cores: o branco e o preto. As variações eram muito sutis: vários brancos e vários pretos. Essa linguagem dualista e quase maniqueísta dos elementos visuais estabelecia os pólos opostos da construção do drama. Branco era a cor de Andorra. Preto era a cor dos invasores. O marrom e o azul eram as cores dos personagens com os quais os outros, centrais, criavam a maior empatia com a platéia. Andorra e os invasores eram um museu de cera cujos valores eram inumanos e absolutos. O branco e o preto eram o preconceito. O marrom e o azul eram o homem no seu universo complexo e incoerente, esbarrando por todos os lados com o bloqueio dos preconceitos, tanto brancos como pretos.

Andorra foi uma experiência de teatro realista muito próxima do teatro épico. Essa abertura épica vai desembocar depois em Os Inimigos, feito sobre os mesmos princípios, e ainda posteriormente em O Rei da Vela, cuja estrutura dramática permitiu um rompimento, agora estrutural, com o drama realista e incorporou-se ao teatro brasileiro como a primeira grande experiência dos anos 60 da estrutura narrativa aberta, talvez indo mais além dos esquemas usados pelo próprio Brecht no Berliner Ensemble, incorporando várias “formas” da linguagem brasileira: Carnaval, musical, Chacrinha etc.

REVEILLON:

Réveillon, de Flávio Márcio, começou a ser ensaiado na Maison Suisse, um grande salão de festas. O chão era de taco, de taco encerado, um horror. Parecia uma repartição pública. Um dia olhei o chão e falei pra Regina: “Ou levamos esse chão ou perdemos o dado básico do espetáculo. Estamos construindo tudo em cima deste chão”. Ela concordou e eu me pus em campo e descobri um chão americano que tinha acabado de chegar ao Brasil. Imita plástico, imita espelho e ao mesmo tempo é taco, que é colocado em placas no chão. É caríssimo, e naquele tempo essa compra foi a parte mais pesada do orçamento. Comecei então a desenvolver, em meio ao processo de trabalho, umas coisas que desciam e subiam, umas luzes azuis, umas cores em função do espelho e reflexos que a sala até então não tinha tido. Na minha cabeça, a peça sempre significou uma mãe tentando lustrar um chão sempre sem cera e um filho tentando tocar guitarra. O barulho da enceradeira era ensurdecedor para ele, e o da guitarra, insuportável para ela. Esse conflito, que era para mim o início da peça (depois não foi feito assim), ficava claro no barulho da enceradeira e da guitarra. Essa idéia ficou presente para mim. É um outro plano de leitura da realidade. Aquele que se dá no palco e que nem mesmo aparece no laboratório. Deve haver, no palco, um respeito pela óptica da fantasia e que é exigida pelo espectador, e isso eu aprendi com o cenógrafo Svobda quando ele veio a São Paulo. “Me conta da dramaturgia de vocês. Por acaso dizem os operários, ou sobre a sociedade de hoje?” - eu perguntei. “Imagina” - ele respondeu. Todo o tempo que o operário está trabalhando na fábrica, ele está consciente. Vai ao teatro esperando o outro lado da gangorra, que é exatamente ver o outro lado da realidade através da fantasia, para um possível contra-balanço. Foi aí que entendi que tudo aquilo que no Brasil diziam ser ser alienação, na Europa era a função da arte, o destino da arte, quer dizer, vendo a realidade, você suspira pelo prazer estético e alivia a dor do mundo. Entender isso parece uma coisa meio platônica ou aristotélica. Para mim tanto faz. Eu só sei que quem paga para ver um espetáculo, quem me sustenta adora sair do teatro aliviado, detesta sair pesado. Quem gosta de sair pesado do teatro é uma pequena parcela da intelectualidade que, em geral, pede ingressos de graça porque não tem dinheiro para pagar. Não me agrada ver uma pessoa sair do teatro dizendo: “Graças a Deus que o céu tem estrelas e eu estou respirando um clima que é ameno:. E afinal de contas São Paulo não é só esse terror de frio e chuva, e a minha vida é muito melhor do que aquelas coisas que aconteceram em cena. Afinal de contas, seu cotidiano é mais parecido com a mulher que passa sua roupa na sua cozinha, seja sua mãe, sua empregada ou até você mesma. Ninguém vive de maneira tão melodramática, atribuindo ao drama um terror de morte.

            [Durante os ensaios de Réveillon pedi ao cineasta Djalma Limongi Batista que tirasse fotos.] Seria uma documentação do dia-a-dia do trabalho visual do espetáculo. Há fotos de Paulo José ensaiando, os atores Sérgio Mamberti e Yara Amaral, ensaios com objetos que íamos catando do Hospital do Câncer, o Arquimedes Ribeiro que era o cenotécnico construindo o cenário.

DOCES BÁRBAROS:

Em Doces Bárbaros embarquei com o Fauzi Arap, diretor do show para o Rio de Janeiro e uma semana depois eu, a Loira, todo mundo estava pendurando um grande pano que era uma flâmula enorme, transparente, translúcida de cor. O pano era tão grande e a casa tão pequena que, anteriormente, não tinha dado para a gente ver o pano em sua forma total. Eu, a Das Dores e as costureiras não tínhamos idéia do que estava saindo e vimos com o próprio Caetano Veloso. “Que felicidade!”. ele disse. Roteiros da vida da gente que são formados por acidentes do cotidiano e no acidente do cotidiano você decide, como se, a cada passo que déssemos, estivéssemos diante de uma encruzilhada.

LABIRINTO: BALANÇO DA VIDA

Labirinto: Balanço da Vida começou assim: “Flávio, vou fazer um espetáculo de poemas”. E então respondi: “Ai, que chato, Walmor! Mais um?!!! Talvez eu consiga fazer alguma coisa que não fosse tão chata - Walmor, mais um.” E aí começou. Íamos muito a Caraguatatuba, meio de férias, meio de feriados. Ele conhecia um povo lá, e eu conhecia um povo aqui, e o povo que eu conhecia ia com a gente pra lá, e o povo que ele conhecia lá vinha pra cá. Foi ficando um pouco de convivência íntima, muito verdadeira porque estava em cima do cotidiano e seus acidentes. Cada vez que acontecia de a gente parar na estrada porque a aurora chamava a nossa atenção ou então quando eu me lembrava de uma música popular ou qualquer outra coisa, tomava nota e ia incorporando. Às vezes a manhã me sugeria um brilho que eu poderia usar. Como isso era ato de convivência, Walmor captava com facilidade a essência do que se ia criando aos poucos. Em cima do primeiro roteiro feito pelo Paulo Hecker Filho e com Maria Thereza Vargas reconstituindo um outro roteiro, e a convivência, consegui juntar o Labirinto com Rosa dos Ventos, uma montagem que eu tinha acabado de fazer mas não era minha, era do Fauzi Arap. Peguei exatamente a mesma estrutura, as quatro partes e multipliquei o sentido (a mesma mandala que Zé Celso usou em As Três Irmãs) projetando, em cima das quatro estações, muitos sentidos e dizendo que, apesar das várias partes que o constituem, a parte mais importante do homem é a vontade porque, de todas elas, é a mais livre. E aí ficou um slogan que eu já tinha usado muito antes num desenho.

Levei um mês desenhando um homem. Era um desenho muito grande. Minha mãe me havia mostrado, um dia, uma frase de um livro que estava lendo: “...tens algo dos anjos, tens algo do fogo, tens algo...etc...etc. e tens a vontade e ela é livre”. Era uma frase atribuída a um santo anônimo do século XVI, se não me engano. Usei essa frase no desenho e no espetáculo, como um mote.

Acho o Walmor um ator incrível da geração dele. Porque ele a pegou no final, percebeu como era a geração mais nova e ficou com todos os sabores, Ambas as gerações têm o mesmo atavismo: nenhuma usa o corpo a não ser como im pedestal para a cabeça, ombros, braços e mãos. É duro, porque o resto é a roupa (muito bem feita) que se fazia no Teatro Brasileiro de Comédia. A geração do Teatro de Arena tem o gesto mais espontâneo, e então você não pode dizer que é pedestal, mas é uma espécie de máscara das convenções do gesto usual, habitual. O que aliás não deixa de ser um pedestal para as várias pequenas máscaras habituais. A dança leva isso ao extremo. O que a linguagem do gesto permite, porque ela destrói a razão utilitária do gesto e reconstrói só a dinâmica do gesto em todas as suas expressões. Nos ensaios, eu fazia uns exercícios que chamei de “exercícios do nada”. Ensaiávamos no Teatro Leopoldo Fróes, um teatro da prefeitura, na rua General Jardim, junto à Biblioteca Monteiro lobato. O teatro estava vazio de cadeiras, de tudo (logo depois seria demolido). “Fale este texto correndo do palco até aquela porta e numa espécie de vôo livre, como se fosse um planador que estivesse aterrisando, ou seja, uma aterrisagem sem choque”. O planador não tem motos. Ele vai chegando com o vento e aterrisa. Porque ele tem uma espécie de autonomia que permite isso

OS FUZIS DE DONA TEREZA:

Os Fuzis de Dona Tereza foi também um espetáculo feito em cima de um outro que eu já havia feito. Fiz Os Fuzis ainda no Teatro de Arena, em 1962, sob direção de José Renato. A coisa de que mais gostava é que a peça tinha poucas páginas. Detesto peça comprida. Peça curta você lê e entende tudo, e é aquilo mesmo que você leu, sem muitas divagações de segundos, terceiros, quartos atos. Ser curtinha permite a você ficar mais entretido com o tema básico. Dava para fazer como uma composição orquestral curta, concentrada, condensada, principalmente porque essa segunda montagem que eu dirigi era feita por estudantes que conseguiam, no máximo uma voraz e rápida passeata.

Não aguentariam nunca o percurso que o Prestes fez com a “coluna” oeki Brasil inteiro e muito menos a longa jornada da China e, no caso da “muralha”, que fosse uma bem pequenininha. O resto já se sabe que é daquele jeito... Qualquer estudante ou pequeno-burguês se cansa logo de qualquer assunto e quer mudar. Então a peça curta é o melhor remédio para ,a;es curtos mais curtos. Focalizamos um determinado assunto, tratamos dele o melhor possível, mexendo no tema das mais variadas maneiras, desde o “bater da massa do pão” até a alegoria do grande bispo que traduz o discurso do generalíssimo Franco. As matracas substituíam as falas das mães e das mulheres porque em meio à guerra todo mundo matraqueia e a fala da mãe é sempre um terror, um lamento de mater dolorosa. E foi em cima desse lamento que fiz o material ficar passeando.

O Cristo na cruz estava garantido porque tinha sido escrito assim. E o lamento dela estava já escrito também como um grande oratório intercalado com o discurso de um padre compreensivo, do irmão exasperado, da namorada desesperada. Discurso doloroso de uma mãe que não quer ter nos braços o filho morto e mesmo assim isso vai acontecer. Na verdade, é um tema que mais ou menos trabalha em cima do inexorável do destino humano e onde o social engole a vontade particular. Por melhores que sejam as suas intenções, a vida ou a morte não dependem de você. A discussão do fato é mais além.

RODA VIVA:

Em 1968, fiz Roda Viva, um texto de Chico Buarque que achava bem fraquinho. “Que tal estruturá-lo, na montagem, como uma missa?” - propôs Zé Celso. “Uma missa?” - eu perguntei. “Uma missa”. “Tudo bem, se você acha é porque teve intuição...”.

Percorri então todo o baixo catolicismo carioca. Saí a campo e fui a tudo quanto era capela de acender vela, santuário com santinho, tudo quanto era coisa mais próxima do candomblé, baixo-espiritismo. Juntei tudo isso a um santo que achei sempre com cara de iê-iê-iê, que é o “Menino Jesus de Praga”. Acho isso porque ele tem sempre um manto todo prateado e uns grandes punhos ao redor da mão (fig.66). Um microfone naquilo resolveria, na minha opinião, a imagem do santo glorificado por uma platéia que confunde muito gente com herói. Achei esse gancho. O Zé montou uma estrutura em cima da missa e começamos a trabalhar os intervalos que iam desde a coisa conservadora do pensamento brasileiro até aquilo que parece ser a coisa menos conservadora do pensamento brasileiro, a chamada vanguarda. Entre um e outro foi ficando caracterizada uma visão distante e crítica dos momentos de glória do cantor de rock, dos momentos de glória nordestinos, dos momentos de glória do cantor festivo, dos momentos de glória de todo os cantores e do processo de venda desses cantores que a televisão faz. Então o palco era a grande boca de televisão. No alto, São Jorge e um vasinho com uma rosa bem grande, como se fosse uma coisa “pop” (estávamos no tempo dos Lichtensteins) e do outro lado coloquei uma grande garrafa de coca-cola e o Pereio sentado a uma mesinha, que era o bar. A coisa aconteceu nesse universo que eu via como se fosse uma mesinha brasileira de canto de sala, que vai desde as saletas da favela até os salões, onde está situado o aparelho de televisão. Só que cada espectador se via refletido, de algum modo, no personagem que estava em cena. Foi uma leitura mais sociológica, digamos assim, que eu comecei a fazer em cima dos personagens, criando um imaginário simbólico para cada um. Pedi para trabalhar com uns caras que trabalhavam com o Chacrinha. Tive o maior prazer de trabalhar com uns artesãos incríveis que inventaram as roupas dele. Além disso, contei também com costureiras convencionais de teatro e montamos uma equipe. Muitas vezes o pessoal do Chacrinha começava o trabalho e eu terminava porque havia muita coisa para ser feita. Às vezes a própria equipe no ateliê do teatro começava e eu terminava para que o acabamento, que contava, em geral, com tantas origens, tivessem uma linguagem mais ou menos unificada, que eu chamaria assim de “Kitsch nacional”.

OS INIMIGOS:

Os Inimigos, de Máximo Gorki, foi uma montagem do Teatro oficina feita no prédio onde funcionava o Teatro Brasileiro de Comédia, assim como, por exemplo, Uma Rua Chamada Pecado foi uma montagem feita pelo Augusto Boal, diretor do Teatro de Arena, no Teatro Oficina. São coisas que aparentemente não querem dizer nada, se não se souber um pouco do que isso significava. O Oficina tinha pegado fogo e o Zé, desesperado, não podia crer nem na hipótese de uma reconstrução. Os Inimigos seria, pois, uma montagem que deveria ser feita para, juntamente com uma retrospectiva do repertório do Oficina, tocar o processo para frente. Logo no início dos ensaios fui ver a rouparia do TBC que naquele momento já não existia mais nos termos que existira nos anos 50. Era um fantasma. Vi as roupas de Maria Stuart, feitas com toda a técnica artesanal que se desenvolveu em todos os andares daquele prédio da rua Major Diogo. Em um andar se trabalhava com esculturas, modelagens, móveis; noutro andar funcionavam cenografia e pintura. Cada um deles com seu responsável. Uma organização inteira montada a partir de modelos europeus, de teatros estáveis. Ver esse guarda-roupa, para mim, foi uma coisa muito estranha porque eu tinha visto essas roupas em cena, com atores se mexendo e falando. Nunca imaginei que se guardassem roupas. Nos teatro onde trabalhei tudo simplesmente ia desaparecendo ou sendo reaproveitado. Não ficava muita coisa naquilo que chamávamos de “rouparia”. Rouparia, para nós, era mais um depósito de trapos. As roupas do TBC tinham etiquetas, por exemplo, “Tartufo” Paulo Autran (Seria “Tartufo”?). Mas o que sei é que era uma casaca de corte rigorosamente perfeito, feita por artesãos e alfaiates que conheciam a técnica da costura mais elegante da época, com tecidos incríveis, em sua maioria importados. Então, de repente, me vi num mundo que eu não sabia que existia. E tudo empoeirado, aos pedaços, triste porque eram máscaras mortas, falecidas. Pensamos então em usar aquelas roupas em nossos laboratórios de interpretação a fim de que emprestassem vida a um personagem que analogicamente seria reconstruído em cima daquilo como matéria-prima da improvisação. Enquanto isso, fiz uma documentação fotográfica incrível tirada das revistas da época. Com uma coisa e outra fomos encontrando um roteiro arqueológico, não no sentido de reprodução, mas no sentido de ilusão possível da riqueza do czar em oposição à pobreza do soldado, ou do general em relação à empregada, digamos assim. Porque o que estava acontecendo na Rússia era um movimento de classes e isso deveria ficar presente, embora completamente ausente porque, afinal de contas, estávamos na rua Major Diogo. Esse processo que pôde contar com restos do Teatro Brasileiro de Comédia atingiu uma linguagem que em nenhum momento desmereceu o espaço que habitava. Augusto Boal, revoltado, me disse no dia da estréia: “Isto é coisa do TBC e não no TBC!”. E a resposta que ouviu de mim foi a seguinte: “Nossa! Eu aprendi tanto com você e você se nega a aprender com os outros!”

PANO DE BOCA:

Outro momento que peguei de transição (espaço mudado de dono e de sentido) foi na montagem de Pano de Boca, de Fauzi Arap, em 1976. O teatro tinha rato morto, restos de comida embaixo do palco(24). Não dava pra se trabalhar lá. Chamei então um “pai-de-santo” e limpamos o teatro. Depois, esse pai-de-santo foi assistir à estréia do espetáculo se sentindo uma espécie de agente daquele espaço. O que quis fazer em Pano de Boca foi uma arena que aflorasse da terra, e tudo que tivesse em torno do espectador e ator deveria ter sido recolhido em depósitos de teatro ou em escolas de samba. A grande parte do material usado não tinha sentido decorativo mas ambiental. A idéia que quis passar era de um velho teatro, reaberto em cima dos escombros. Mais uma verdade do que uma ficção. Um velho depósito parado, com um monte de coisa velha, onde se tentava uma nova produção. Era só uma espécie de documento do documento.

Uma nota que escrevi, na ocasião, completa o meu pensamento:

Pano de Boca não é uma peça de teatro convencional, mas uma programação através de “elementos teatrais: de uma reflexão sobre nós, o teatro. O tratamento do galpão-platéia Treze de Maio não é, portanto, um cenário, mas uma programação através de “elementos cenográficos” de um espaço para essa ação dramática reflexiva.

O “palco” será simplesmente um grande praticável circular (mandala) sobre o chão do galpão. Não é palco (único lugar da ação), mas um dos “lugares da ação”.

A rotunda não é senão uma rotunda-objeto. Aqui ela é um objeto teatral em si, enorme, velha e desgastada, sem função específica a não ser a sua própria teatralidade. Através do movimento (vento) da iluminação (contraluz ou luz frontal), e projeção de slides, poderá vir a sugerir vários climas que podem ir de um velho circo mambembe e falido a uma enorme embarcação etc. etc.

Duas “varandas” laterais, que também não são varandas, mas elementos do palco convencional, permitem o transporte da platéia pelas coxias misteriosas da velha “caixa de cena”, herdada do tempo dos nossos bisavós, habitadas hoje pelo passeio dos “fantasmas das óperas” da nossa infância.

O teatro de palco acabou. Já faz tempo que esses fantasmas perambulam entre velhos pedaços de cenário espalhados por todo o galpão, vestindo roupas velhas e de vários estilos, numa história louca e fragmentada da nossa imagem-memória.

O galpão do treze de maio conteria os registros mais marcantes desse brinquedo-arte que foi o teatro que, como o circo, teve o seu tempo social.

Refletir sobre o anacronismo do palco (ilusão dramática da vida) exige que se reúnam “ao vivo” os restos mortais dos depósitos do Teatro Municipal e de outros teatros, roupas das velhas rouparias e objetos dos velhos porões empoeirados.

Feito da reunião desse tipo de lixo, o lugar da ação passa a incluir poltronas, corredores e públicos em comunhão. O público, esse virá espontaneamente completar o reencontro, colocando-se ordenadamente entre os escombros como é seu costume.

A “luz da platéia” irá cair aos poucos, e os fantasmas da imagem-memória reencarnarão, à vista de todos, os seus papéis intermediários entre o sonho e a realidade, entre a realidade e o sonho. Não será contada nenhuma história, estaremos todos simplesmente retomando o “teatro do palco”, como guias antropológicos dos nossos próprios clichês”: eu, no caso, faço o papel do cenógrafo. Portanto, não estarei “presente”...

O “pano de boca” roto e pobre, com suas máscaras do riso e do choro desbotadas, a ribalta mal alumiando os escombros semi-encobertos pelo terremoto, serão o cenário, propriamente dito, das nossas ruínas. Como se tudo se passasse num hoje-daqui muito tempo”, e nós insistíssemos em ficar aderindo à matéria do teatro-ficção entre a vida e a morte.

O mais engraçado é que sempre teríamos público...    

NUMA NICE:

Acho que podemos falar de Numa Nice como um trabalho no qual me empenhei não querendo fazer. Me empenhei tecnicamente sabendo que não queria. De repente me envolvi por uma espécie de necessidade inclusive de me manter trabalhando. Tinha feito vários projetos que dançaram, pararam no meio, como acontece muito no Brasil.

Não conseguia, enquanto proposta, achar nada engraçado naquilo, nem muito interessante, mas me pus, tecnicamente, a resolver. Mas, como numa receita de doce, o ponto estava errado. Não dava para você dizer que era um horror porque era lindo de se ver. Ruim de comer. O ponto exato na vida é uma coisa muito complicada: acertar o ponto do pão. Bom de ver e bom de comer. Não ser excessivo para não enfartar e também não ficar com água na boca por ter comido pouco...

TEATRO GERAL:

Sempre muito interessado no estudo dos esquemas espaciais da realização dos vários momentos históricos, fui formado na análise estrutural das linguagens visuais ou sonoras. Isso me deu a oportunidade de procurar conviver com elas como signos que registram um tipo específico do conhecimento e não como um conjunto estilístico ou formal. A linguagem visual ou sonora como diálogo do universo de casa artista. Decompor esse diálogo em signos semânticos e sintáticos permitiu-me integrar cada conjunto no quadro histórico, filosófico, social, político, psicológico etc...

Cada montagem minha é um pastiche específico, uma mistura de signos de origens diversas com uma coesão interna especificamente teatral. Roda Viva foi um exemplo mais nítido dessa maneira de trabalhar. Embora essa maneira “edética” de trabalhar os signos fosse a mais evidente, ela foi praticamente a mesma utilizada em Os Inimigos, de Máximo Gorki, ou Andorra, de Max Frish, ou Ópera dos Três Vinténs, de Bertold Brecht, ou mesmo Réveillon, de Flávio Márcio.

Se a estrutura dramática é mais aberta, os contrastes são a própria estruturação da trama visual e espacial (estou empregando aqui a expressão “drama fechado” e “Drama aberto” na acepção clássica).

Em qualquer caso, entretanto, aprendemos que o teatro é o que se quiser que ele seja. Ele não preexiste. A única coisa que ele exige de você é a sua presença, todos os buracos de seu corpo, as sete portas, as sete moradas, seu consciente, todas as suas emoções, toda a sua energia e toda a energia que você possa reunir através da manipulação da matéria, cor, luz, som, como um alquimista que junta seu ouro, sua prata em sua proveta, conforme sua receita.

No teatro, você não pode esquecer nenhuma de suas partes em casa ou na coxia, como se a ribalta, seja ela qual for, ficasse como o limite do possível. A platéia é que permanece dentro dos limites impostos pelos bloqueios das convenções, do comportamento socialmente aceito como normal. Além dela, ficam todos completamente loucos. Se há uma regra é só essa. Além da ribalta não há separação entre ficção e realidade, sonho ou fantasia e verdade.

As análises sistemáticas me enjoam e me cansam. Parecem uma repetição decorativa de um esqueleto metodológico sempre muito conhecido. Me desinteressei por metodologias, e as crônicas e reportagens e as poesias me parecem sempre mais ricas. Pelo menos mais divertidas.

Prometi falar sobre espaço, cor, ritmo e movimento, e esses elementos só ponteiam aqui e ali sem nenhuma organização própria. Sobre cada espaço trabalhado há um conjunto enorme de fatores que influem, assim como todos os outros elementos de linguagem. Mas, quando pensava em escrever sobre linguagem em si, vinha um tratado sobre teatro, cenografia, arquitetura e pintura. Tudo muito chato, e duvido que diferente do que já existe por aí. A maneira pela qual eu me aproprio desses elementos é cada vez mais aleatória e intuitiva. Nos anos 60 existia uma enorme coerência e sistematização. Hoje, não.

Teatro é isso mesmo, fica velho logo em seguida, pelas novas coisas que se superpõem ao que já foi feito.

PINTADO DE ALEGRE:

Pintado de Alegre foi meu terceiro trabalho profissional, e o segundo realizado no Teatro de Arena, em 1961. Escrevi no programa: “Meu trabalho passou por um processo de criação empírica. Surgido das idéias do texto, da visão humanística do autor, Flávio Migliaccio: ‘cada elemento toma do meio ao acaso, segundo as necessidades interiores dos personagens; uma muleta adaptada à cama sem pé, a flor que cobre o remendo aliado ao sabor da coisa usada e gasta, longe da limpeza da coisa nova ou super-racionalizada’. Procurou a componente visual da realidade impressionista, proposta pela direção, no que isso tem de fragmentação da cor, de valorização dos detalhes, em primeiro plano, pretendendo mais a atmosfera do que o real. Aproximou-se ora das fardas, ora dos uniformes de futebol, ora dos cantos de sapateiros, dos balcões de bar, das casas em demolição, do subproletariado, da gente desempregada que dorme pela rua, do feirante, dos circos mambembes, das pinturas populares das carrocerias de caminhões, do fetichismo das bancas de ‘remédios santos’ dos cortiços. Não pelo que possa ter de folclórico, mas pelo que tem de realidade expressiva da nossa sociedade”.

UM BONDE CHAMADO DESEJO:

Anotações para Um Bonde Chamado Desejo:

Estrutura linear de canos de ferro (Mannesmann).

Trainéis laterais aplicados às paredes do teatro revestido com eucatex recortado e montado segundo o desenho convencional de assentamento de tijolos de parede comum, sem revestimento.

E estrutura linear de canos era ao mesmo tempo estrutura física e cenográfica, dividia e organizava todo o espaço da arena de parede a parede, de platéia a platéia e de chão a teto. Organizava os vários lugares da ação sem ruptura de coerência espacial, emprestando a cada momento da ação a mesma densidade prevista no drama.

O “realismo crítico” sugerido pela direção do espetáculo era aplicado às imagens: paredes, hastes de ferro, móveis, roupas, objetos, procurando ampliar o conflito entre o urbano (Kowalski) e a fantasia rural (Blanche Du Bois) através da cor, matéria e organização espacial. Os elementos de contraste ampliam o sentido do conflito. Procurou-se, através do contraste de cor e matéria, assim como da seleção de casa objeto, criar o universo visual de casa personagem em casa momento da ação como extensão do seu corpo, movimento e ação dramática.

O material de cena foi incorporado desde os laboratórios de interpretação e resultaram carregados de carga dramática específica de cada cena.

O resultado dramático da ação ficou intimamente relacionado com cada lugar ou objeto incorporado através da interpretação, com os atores.

Foi uma experiência realista de grande densidade dramática, em que cada elemento ganhou a coerência que a tessitura do texto exigia, uma vez que ele próprio é extremamente coerente e com uma tessitura ímpar.

DEPOIS DA QUEDA:

Imaginei que Depois da Queda de Arthur Miller poderia ter um espaço em perspectiva quase renascentista onde o homem se colocasse como centro do universo. Toda a estrutura espacial era convergente e perspéctica para um eixo onde o personagem Quentin/Arthur Miller se colocava como elemento de ligação narrativa entre os vários flashes. Todos os planos de piso eram rampas convergentes, Todos os trainéis laterais eram lâminas convergentes. A luz cortava os vários “lugares da ação” ampliados por imagens que surgiram iluminadas por trás dos painéis. A montagem foi para o Teatro Popular de Arte de Maria Della Cosra e Sandro Polloni.

Nota da editora:

Encontram-se aqui reunidos, e em alguns trechos do texto mesclados, dois depoimentos de Flávio Império seguidos de umas poucas notas, escritas especialmente para programas ou releases.

O primeiro depoimento trazia, entre inúmeras informações, algumas reflexões de ordem pessoal e foi encontrado entre os diversos escritos pertencentes ao cenógrafo, sem qualquer menção à autoria. Na primeira página da cópia xerográfica, um título: “Cenografia. Cenógrafo. Flávio Império”. Entre as idéias desenvolvidas pelo aluno ou aluna, o depoimento datado de 1975 (ano da montagem de Réveillon, assinalado como seu último trabalho dessa época), não fazia referência alguma a seu autor ou sua autora. Muito menos indicava a que estabelecimento de ensino foi dirigido. Mas, em outro documento também encontrado, havia referências a certo depoimento dado à Dona Fernanda. No entanto, após inúmeras diligências, no andamento final do livro, localizamos a responsável. Trata-se da então aluna Fernanda Perracini Milani que o procurou para uma entrevista a ser utilizada no trabalho (Três Contribuições ao Teatro Brasileiro Moderno: TBC, Arena e Oficina) para o Curso de Pós-graduação em Artes, da Escola de Comunicações e Artes-ECA. USP, sob a responsabilidade do Prof. Sábato Magaldi. As declarações do cenógrafo, datadas efetivamente de 1975, são esclarecedoras e únicas. Só podemos agradecer muitíssimo à D. Fernanda a autorização que nos passou, permitindo reproduzi-las.

O segundo depoimento foi prestado em 11 de junho de 1983 às pesquisadoras Mariângela Alves de Lima e Maria Thereza Vargas, que o procuraram em nome da Equipe Técnica de Pesquisa de Artes Cênicas, da Divisão de Pesquisas (antigo Idart), em sua residência, pouco antes da inauguração da exposição Rever Espaços (25 de julho de 1983), promovida pela Divisão de Artes Plásticas do Centro Cultural São Paulo, cujos organizadores foram o próprio Flávio, Luiz Augusto Contier, Paula Motta e Ana helena Curti.

Notas:

*OS INIMIGOS:

Engano do cenógrafo. Os Inimigos, de Máximo Gorki, estreou n TBC em 22 de janeiro de 1966, antes, portanto do incêndio acontecido em 31 de maio de 1966, na rua Jaceguai. O que realmente aconteceu é que o Oficina estava ocupado e necessitavam de um outro espaço. Por um acaso o TBC estava vago. Intencionalmente ou não, a escolha do local adquiriu um sentido muito especial. (p.275)

Flávio Império

FLÁVIO IMPÉRIO

DEPOIMENTO DE FLÁVIO IMPÉRIO
(1976)