ARENA CONTA ZUMBI
(1965)

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  • REPERCUSSÃO (1/6)
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    Décio de Almeida Prado
    O Estado de S. Paulo
    09 de maio de 1965

    Acervo Flávio Império

    © Décio de Almeida Prado

    Arena conta Zumbi

    Arena conta Zumbi é uma história narrada sem nuances, apenas em preto e branco – mas com as cores trocadas. Os negros têm o alvor das asas dos anjos: constróem um paraíso de pujança econômica, de justiça social, e ainda por cima com deliciosos toques de erotismo. A fórmula perfeita: o trabalho livre e o amor livre. Em compensação, a alma dos brancos é do negror das trevas de Satanás: arrasam, pilham, esfolam, roubam, matam. Os pretos são valentes, fortes, líricos, sensuais. Os brancos são decrépitos, adamados, pernósticos, ridículos. Supreendentemente, os brancos vencem. Deve haver alguma coisa que não foi bem contada.

    É que a peça não se importa muito com a realidade concreta. A idéia que faz dos homens, no que concerne ao bem e ao mal, é essencialmente religiosa: a vida concebida como a luta entre dois princípios opostos, entre os imaculadamente puros e os irremediavelmente perversos. Nesse universo maniqueísta não há lugar para contingências históricas, circunstâncias sociais, toda essa delicada e complexa textura que determina o modo de ser de uma comunidade. Os negros são idealizados como os índios foram durante todo o romantismo. No fundo é a visão tradicional da sociedade mas com os papéis permutados: os que eram considerados bons – os brancos – passam a ser maus e vice-versa.

    Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri nada têm de ingênuos. Se reforçaram de tal maneira as linhas capitais da peça, até que não se visse nada além do arcabouço, é que desejavam contrapor outros mitos aos mitos burgueses, inclusive o da superioridade da raça branca. Acreditam que a luta social se faz através de gigantescas simplificações, cuja finalidade é fortalecer o ardor dos combatentes. E é exatamente isso que não nos agrada em Arena conta Zumbi. A esquerda brasileira tem vivido nestes últimos anos em um infeliz conubio com a demagogia, sempre na esperança de surrupiar-lhe as massas eleitorais, mas tendo de se contentar com o papel subalterno e pouco sugestivo de sustentáculo intelectual de um populismo de péssima qualidade. Em vez de servir-se da demagogia em seu próprio proveito, como pretende, ela é que tem servido de retaguarda ideológica à demagogia. Talvez fosse agora a oportunidade de recomeçar em outras bases, de interessar-se um pouco mais pelos fatos e um pouco menos pelas abstrações, um pouco mais pela verdade e um pouco menos pelas distorções deliberadas ou inconscientes da propaganda.

    O mais curioso é que a história de Zumbi, por si mesma, já tinha aquele alcance revolucionário que a peça tanto se empenha em lhe dar. Uma sociedade baseada na escravidão, como a brasileira, não posia admitir, por coerência interna, uma comunidade de negros livres, não tanto pelos prejuízos que acarretava – fugas constantes de escravos – como pela idéia que encarnava, idéia de liberdade que empregada em relação aos pretos, resultava forçosamente em outra idéia, ainda mais perigosa: a da igualdade racial, primeiro passo para a igualdade social. Esse germe de subversão já era suficientemente forte para dispensar qualquer acréscimo caricatural ou reforço romântico. Os grandes temas da democracia – liberdade, igualdade, fraternidade, por exemplo – ainda não perderam a sua carga explosiva, podendo ser tratados sem complacência sentimental e também sem picuinhas de consumo imediato, referências cifradas que só são compreendidas por meia dúzia de iniciados políticos. Há uma certa distância entre o “cabaret literário”, à maneira alemã, que vive de alusões aos fatos do dia, e a peça de teatro que, mesmo quando engajada, deve pairar a uma altura um pouco mais elevada, tirando daí a sua força de convicção.

    Arena conta Zumbi – o título mais apropriado talvez fossem Arena canta Zumbi. A música de Edu Lobo, com efeito, que outros julgarão com mais competência mas que nos pareceu ter aquela facil comunicabilidade necessaria ao teatro, chega frequentemente a abafar o texto, com algum prejuízo para o equilíbrio do espetáculo. Eliot, defendendo o teatro em verso, escreveu que a poesia só se justifica no palco quando a prosa se revela insuficiente. Seria mais ou menos essa, a nosso ver, a função da música: suplementar a palavra, intervir naqueles momentos privilegiados em que sentimos necessidade de uma mais poderosa expansão lírica ou satírica.

    Por outro lado, entretando, o título é perfeito: a história não é vivida mas apenas narrada pelos atores. Esses não se apresentam como personagens, mas como narradores, atuando sempre coletivamente. A mesma pessoa – Zumbi, por exemplo – é representada por este ou aquele intérprete, dependendo das circunstâncias e sem nenhum prejuízo para a clareza do espetáculo. É uma técnica original e bastante efetiva dramaticamente. O cenário compõe-se somesnte de dois ou três acessórios e um opulanto tapete vermelho, que faz as vezes de pano de fundo: Boal, como encenador, tende cada vez mais a projetar os atores sobre o chão. Não há nomes a destacar no elenco, pelo próprio caráter da representação, a não ser o de Dina Sfat, entre as mulheres, todas elas particularmente jovens e bonitas, e, entre os homens, Gianfrancesco Guarnieri, um prodigioso ator de farsa que, neste terreno, ainda não foi devidamente explorado.

    Apesar de tantas e tantas objeções, Arena conta Zumbi é um espetáculo agressivo e inteligente. Lamentamos apenas que tenha tão pouca confiança naquelo que os autores talvez classifiquem de razão fria. Afinal de contas, Brecht e Srtre, para tomar dois exemplos célebres, são autorres revolucionários pelo conteúdo objetivo de seu pensamento ou pela comoção generalizada que criam no palco? Arena conta Zumbi lembra frequentemente um comício político cantado e dançado: um frênesi de movimentos, de rumor, com muito poucas perspectivas realmente novas. Sound and fury – será esse por acaso o novo ideal do nosso teatro de esquerda?

    DÉCIO DE ALMEIDA PRADO

    ARENA CONTA ZUMBI
    (1965)