PATÉTICA
(1980)

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    Trecho entrevista de Flávio Império a Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima
    Exposição REVER ESPAÇOS
    Centro Cultural São Paulo, 1983
    Acervo Flávio Império; Prefeitura de São Paulo/ Secretaria Municipal de Cultura/ Centro Cultural São Paulo

    © Flávio Império

    A Patética não passa de uma teima do diretor Celso Nunes, querendo que eu voltasse a fazer teatro, numa época em que eu estava voltado para a pintura. Tanto assim que o projeto saiu numa tela, numa tela pintada num ateliê de pintura. Eu não estava mais com vontade de fazer teatro, mas ele me convenceu. O Celso é uma das pessoas mais sistemáticas com quem trabalhei. Tem uma energia positiva que coloca em tudo que faz. E como tem fé, ele faz. Porque se tudo dependesse de mim...seria difícil porque tenho dúvidas, acho sempre que não vai dar. E então fico sempre perto de quem acha que dá e faz. Fico escandalizado com a capacidade mágica de certas pessoas, que transformam a impossibilidade em nova realidade. Por causa disso, sou carona de teatro desde que nasci.

    A estética da Patética nasceu assim:

    “Celso, por que você faz tudo em preto e branco? Que mania! Você não sabe que existe o technicolor?”

    Resposta:

    “Eu faço tudo em preto e branco, Flávio Império?” (porque ele sempre me chama de Flávio Império, como se meu nome fosse nome de rua).

    Continuei: “Noto uma coisa que me desagrada em seus espetáculos: é que tudo é em preto e branco e, quando entra cor, é com sentido puramente simbólico, nunca sensorial, sensual.”

    A cor é a linguagem da sensação mais viva e a forma da razão. Então você constrói, delineia o seu espetáculo e quer tanta clareza nele que passa a eliminar a cor porque ela confunde a mente, trazendo também um outro nível de emoção, que são as sensações mais grosseiras - tipo prazer, alegria, tristeza - ensimesmadas, quer dizer, saídas do baú de cada um. Tudo vai depender dos baús individuais e, conforme você quer determinar a emoção pela leitura do que você faz, você delineia a forma. Nesse caso, o branco e preto é útil.

    Eu prefiro a difusão das sensações no teatro. Acho o branco e preto chato. Parece um livro que eu tenho que fazer um esforço para detectar exatamente a idéia que está contida em qualquer um dos momentos. Saco de coisa tão determinada, tão autoritária como linguagem para minha cabeça! Então eu prefiro o arco-íris, que não é absolutamente nada. É a imagem virtual da decomposição da luz branca. Só porque choveu e fez sol ao mesmo tempo. Então para mim aquela coisa de “sol e chuva casamento de viúva...chuva e sol casamento de espanhol” sempre foi teatro. Como se o cenário de Deus tivesse uma pecinha completamente sem sentido, mas tão colorida e surpreendente na magia do aparecer e existir que eu fico achando a cor teatral, pela própria natureza do fenômeno cenográfico que Deus inventou e com o qual aprendi o que todo mundo sabe que existe na gota, no brilho do cristal. numas irrealidades e que o arco-íris nunca aparece de verdade, a não ser quando pintado com tinta. Então por que não sugerir o arco-íris, já que não é materializado, utilizando a cor fragmentada mesmo, distribuída onde possa aparecer melhor. E, se for preciso delinear com mais clareza a idéia, que se use então o preto e branco!

    E falei então para o Celso: “Nosso espetáculo será assim: branco e preto é a sua cabeça, que eu respeito; e a minha, que eu não respeito nem um pouco, ficará com o outro lado”. Não acredito que o mundo seja preto e branco só. Acho que, se for posto assim, poderá ficar com um tipo e clareza, mas ele estará nos entretons das cores. Não estará nos valores da sombra absoluta, da luz absoluta. O olho humano está mais acostumado às nuanças do que aos contrastes. É um direito do público exigir que aconteça com ele o mesmo fenômeno que completa as emoções, as sensações que tem. “Vou ficar com a parte de circo mostrada na peça e você fica com a parte da peça realista. Não vou nem me preocupar com os personagens realistas. Conheço todos. Não vou perguntar pra você como é que fulano de tal se veste. Vou numa loja de roupa usada e vou juntando num esquema de cor que faça contraste com o circo. Faço todos os objetos e você fica com o segundo andar, que é branco e preto.”

    Ficamos plenamente satisfeitos: eu com o meu circo, e ele com o teatro dramático. Ele compreendeu com muita facilidade o meu circo, mas eu com muita dificuldade compreendi (e compreendo) o realismo dele. Assisti a tudo aquilo com muita dificuldade, principalmente a cena de tortura, que eu não quis nem ler. Fui só assistir. Não gosto de usar o teatro pra se fazer esse tipo de coisa. São coisas feitas em outros lugares, e eu acho que não vale a pena evocar. Já é demais que existam. As outras coisas são evocativas: é a natureza, é a vida, é a cor, é a capacidade de ver, de distinguir o brilho do opaco, a capacidade de distinguir o agressivo do suave. Você então veste o personagem assim: uns de agressivos, outros, suaves. Há uma forma para isso. O agressivo quer tudo meio anguloso, duro, reto. Tudo que é suave é ondulante e, entre umas e outras gestalts, você faz brincar os babados, os recheios dos personagens, sem precisar transformar numa alegoria, mas em matéria bruta que a emoção faz chegar diretamente porque as percepções da época têm mais ou menos condicionamentos semelhantes. Existe, em todas as épocas, uma espécie determinada de sonho para o que estão dormindo e de realidade para quando acordam. Quando você consegue, ainda que pela mascarada, aproximar o momento do repouso do momento da vida, tanto melhor. Então, que se durma acordado no teatro! Acho isso melhor do que chamar tanta atenção para a vida.

    FLÁVIO IMPÉRIO

    PATÉTICA
    (1980)