CHIQUINHA GONZAGA, Ó ABRE ALAS
(1983)

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  • DEPOIMENTOS (1/1)
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    Trecho entrevista de Flávio Império a Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima
    Exposição REVER ESPAÇOS
    Centro Cultural São Paulo, 1983
    Acervo Flávio Império; Prefeitura de São Paulo/ Secretaria Municipal de Cultura/ Centro Cultural São Paulo

    © Flávio Império

    Num certo sentido Chiquinha Gonzaga, montada pelo Teatro popular do Sesi, é fruto de uma quase síntese da linguagem num plano abstrato. Existe morte também em Chiquinha Gonzaga, mas não é dramática. Só a Chiquinha chora, a família não. No alto, tem a mãe que a recebe, que é a mulher, e o céu e as estrelas que se acendem num fundo inteiro, como se, redimidas pela morte, todas as gerações tivessem seu lado construtivo e destrutivo.
    Chiquinha abençoou a morte do pai porque sabia do que se tratava, os preconceitos que o pai tinha em relação a ela e independentemente da rejeição final (o pai não a quis receber), ela o incorpora no lado da morte, no sentido do alívio, inclusive dos pesos da terra e, numa espécie de juízo final, ela o absolve, apesar de não ter poder nenhum sobre a alma do pai. Só tem poderes sobre a sua própria alma e, se fosse condenada, seria condenada, seria condenada pelo resto da vida. Então ela absolve a si mesma, no pai, porque, na verdade, nunca se sentiu culpada. Batalhadora, nunca arredou o pé do que pensava das coisas. Tinha certeza de que os outros deveriam fazer o mesmo e por isso entendeu perfeitamente o processo da família e, como não amargou na rua do desespero, realizou uma carreira que foi reconhecida, como poetisa, musicista etc. Sabia que a própria sociedade que a condenara agora a sustentava e tinha o maior prazer em saber que ela existia. Era aclamada na rua... digamos assim. A última pergunta que fazem a ela é: “Onde é que a senhora vai?. Está com 83 anos. E ela responde: “Uai, estou trabalhando...”. Nunca parou de trabalhar. Achei que isso não era o fim da peça que fizesse com que as pessoas suspirassem de saudades dela. Então eu fiz aparecer uma última alegoria. Inventei um carnaval e coloquei uma ponte voltada para a platéia como se fosse trampolim, e o figurino que ela veste vai até ao chão como se fosse ela própria uma espécie de destaque de escola de samba da história que acabou de contar, e o cordão que sai de baixo da saia e as bases que o destaque segura são claves de sol. Se forma nenhuma queria perder a oportunidade de chamar atenção para a linguagem sentimental da música que ela compôs. Acende-se um céu de estrelas. É madrugada, e o desfile começa a aparecer: uma única figura enorme, cor de madrugada, vinda da noite, aquela passagem do preto para violeta, mas claro, tipo cinza. É a roupa final do espetáculo. É como um bolo de noiva enorme que avança para a platéia. Da saia feita em pedaços, saem as figuras que contaram a história. Têm algum elemento prateado (igual à cor da roupa de Chiquinha). São elas o bloco de sua própria escola de samba. Ela fica sozinha em cima do carrinho. Quis mais uma espécie de grand final, de pequena revista de paróquia, jogando com a metáfora do teatro e a metáfora da revista como linguagem. Tudo sem querer fazer um grand final de verdade. Inventamos uma coreografia construída também em cima de uma música conhecida. Atrás dela então se acende uma grande luz, enquanto ela vem avançando. E na lua está escrito: fim. Pedi para ser tocada a Lua Branca no meio do espetáculo, e é essa a lua que aparece nesse final. Pedi para que fosse tocada essa música porque achei que faltava no texto uma valorização do homem amoroso. Só aparecia a mulher como capaz de amar, de ser mãe, protetora, batalhadora, e o homem aparecia só como uma espécie de zangão que trepa e morre. Acho isso muito pobre. Acho que o homem também tem lá a sua riqueza! Então eu quis mostrar o sofrimento dele fazendo-o cantar Lua Branca, na hora em que ela o abandona. Nesse momento, sobe um carrinho, pára e aparece a lua branca projetada na tela. Essa música composta por ela dá uma idéia do lado sentimental de Chiquinha Gonzaga. Lado sentimental de ter ela seguido em frente, segurando a própria afetividade e que foi transformado em música. Ela não deixa de ser uma poetisa menor dos sentimentos sentimentais dela. Esse lado está um pouco desaparecido na peça. O que se mostra é o sentimento heróico, radical dela perante a vida e a época. Aparece como uma grande turrona, com inimigos e amigos. Todos os inimigos desaparecem. Ela está morta. E então os inimigos, que eram os de cor preta, passam a ter cor prateada. Relembrar Chiquinha Gonzaga não é relembrar glória nenhuma. Nunca foi reconhecida como uma grande compositora. É uma musicista menor, o que ela fazia era uma coisa “choppiniana”, muito fraca para o gosto da crítica. Mas o público da “novela das seis” vai adorar!

    FLÁVIO IMPÉRIO

    CHIQUINHA GONZAGA, Ó ABRE ALAS
    (1983)