MORTE E VIDA SEVERINA
(1960)

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  • REPERCUSSÃO (1/1)
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    Décio de Almeida Prado
    O Estado de S. Paulo
    04 de novembro de 1960

    Acervo Flávio Império

    © Décio de Almeida Prado

    Morte e Vida Severina

    Morte e Vida Severina é desses espetáculos de que o crítico sai um pouco desapontado consigo mesmo, por não ter gostado tanto quanto deveria. Um texto de grande qualidade literária, uma iniciativa comercialmente desinteressada, um diretor que se estréia trazendo a flama amadora a um conjunto profissional, tudo, enfim, para nos arrancar da rotina, para nos encher de entusiasmo, exceto aquele elemento indefinível que distingue as experiências artísticas integralmente bem sucedidas.

    O poema de João Cabral de Melo Neto parece-nos ser uma resposta perfeita a uma aspiração ainda mal formulada de grande parte de nossa literatura e, em particular, neste preciso momento, da quase totalidade do nosso melhor teatro. O que todos desejam é uma arte que não vire o rosto ao Brasil. Que não ignore certa miséria que a nossa incipiente riqueza industrial torna ainda mais chocante. A fome, como observou com razão Julia Marias, foi o estado normal da humanidade até bem poucos séculos. A diferença é que agora possuímos termo de comparação – e a força do contraste não pode deixar de nos encher de vergonhas. A fome de tantas e tantas regiões brasileiras é o escândalo da vida nacional. Enquanto não resolvermos o problema, não temos o direito, como Nação e como indivíduos, de dormir em paz.

    Mas semelhante arte de natureza menos política do que humana, só será válida na medida em que permanecer fiel a si mesma, não caindo na retórica, não cedendo à facilidade das denuncias demagógicas. O romance do Nordeste, nas mãos de José Lins do Rego e Jorge Amado, descobriu o timbre lírico que lhe convinha. João Cabral é de outra geração, ou de outra família de espírito: quer governar as palavras e não deixar-se embalar e se arrastar por elas. A sua poesia é mais seca, mas descarnada, mais irônica, mais cerebral, mais exata, talvez, por se apegar teimosamente à aridez do assunto sem se permitir nenhuma licença poética, nenhuma fantasia, a exemplo do que já fizera Graciliano Ramos: um estilo de pura fibra para exprimir o drama inarticulado, aliterário, destas Vidas Secas. A dificuldade, em tais exercícios de domínio sobre as palavras, e sobre si mesmo, é não virar o fio, não abafar a comoção sob o pretexto de refreá-la. Esse é o ponto difícil de equilíbrio em que o poema impecavelmente se mantém, de princípio a fim.

    A direção de Clemente Portela não consegue ter igual força. Procura fugir ao formalismo, ao estetizante, sem, com isso, infundir vida à encenação. Os cenários e as roupas estão bem, não há nada de apropriadamente errado nos atores, mas o palco não se aquece, as palavras não atingem o grau de incandescência dramática, o poema não se transmuta em obra de teatro. Por outro lado, as imagens fotográficas e os dizeres projetados (elementos pedidos emprestado a Brecht, que se vai tornando rapidamente o pau de toda obra dos encenadores nacionais) pouco acrescentam artísticamente ao texto, as imagens porque são pequenas, pouco nítidas, não impondo a sua presença a nós, e os dizeres porque não têm a característica mordacidade brechtiana.

    Walmor Chagas não é Severino, não por deficiência, mas por temperamento, natureza. As suas qualidades não são rústicas, são civilizadas: pudor, malícia, inteligência. Não pensamos no Nordeste e sim, por momentos, em alguma personagem clássica, perdida entre o agreste e o sertão, e que sabe dizer versos com admirável bom gosto. Os outros, não chegam a ter existência dramática própria, excetuando-se, em rápidas passagens, Kleber Macedo, Assunta Perez, Benjamin Cattan e Glauco De Divitis.

    Morte e vida severina está sendo apresentada no Teatro Natal, pela companhia Cacilda Becker. Faz parte da “Quinzena Teatral”, patrocinada pela Comissão Estadual de Teatro.

    DÉCIO DE ALMEIDA PRADO

    MORTE E VIDA SEVERINA
    (1960)